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    Tati Bernardi

    Os mascarados

    15/04/2016 02h00

    Os manobristas usavam máscaras. Todos os funcionários do hospital usavam máscaras. As atendentes usavam máscaras e luvas e distribuíam álcool gel e máscaras e luvas. Todos os pacientes usavam máscaras e mesmo assim se olhavam assustados "será que você está de máscara porque já está doente?". Os enfermeiros e médicos estavam fantasiados de apicultores. Eu não sabia mais se estava na Bela Vista ou no epicentro do ebola. Se tirariam meu sangue ou minha vida. Se daria mesmo tempo de usar o vale cafezinho nesta encarnação. Meu marido apertou meu braço e murmurou algo como "corre". Olhei pra ver se era piada, se ele estava rindo, mas não dava mais pra ver seus lábios, alguém já tinha metido uma máscara em seu rosto.

    Tive a péssima ideia, em meio a uma epidemia de gripe H1N1, de ir ao hospital fazer exames de sangue. Eu deveria ter feito esses exames em janeiro, mas como sair de casa durante à pandemia do vírus da zika? Eu não estou grávida (como uma amiga querida que, há cinco meses, está de moletom em um quarto com o ar-condicionado na função Polo Norte), mas nem por isso quis correr o risco. Também não viajei no Ano Novo pro Nordeste e nem no Carnaval pro Rio de Janeiro. A real é que desde o último surto de dengue evito sair de casa.

    Na parede, um cartaz informava sobre os sintomas. Antes de chegar ao final do texto, já comecei a sentir dores de garganta, de cabeça, nos músculos, nas juntas. Pensei que era a única demente, me banhando em álcool gel como se fosse a água de uma bica purificada depois de 17 horas em uma trilha macabra, quando notei que meu marido usava as costas da mão direita para medir a temperatura da testa.

    Pedi a um enfermeiro apicultor "a verdade" e ele fez cara de "a mídia não revela pra não assustar a população, mas Nostradamus só errou o ano". Perguntei se ele estava vacinado e ele fez cara de "só não está quem é uma anta completa". Pois eu não estava. Perguntei ao enfermeiro apicultor se ele sabia quando a vacina retornava e ele fez cara de "aqui é terceiro mundo, não volta nunca mais ou quando voltar estará vencida ou adulterada e vem aí a Zika Influenza Power Dengue Ranger".

    Eram exames de rotina, que faço há mais de 15 anos, todos os anos. Já sei que minha hemossedimentação dá um pouco alterada e que isso é normal. Já sei que minha proteína c-reativa dá um pouco acima e que não tem nada a ver com o coração. Já sei que as sorologias dão negativas, uma vez que estou aposentada das festinhas e, mesmo quando ainda as frequentava, era a neurótica da proteção. Já sei que meu colesterol bom é ótimo e o ruim é excelente. Que a tireoide segue na luta sem nenhum abatimento. Sei de tudo, mas os repito sempre, na espera de que, ao menos nesse quesito, a vida seja um tédio absoluto.

    Eu era o número 546 e ainda estavam chamando o 522 quando um primeiro espirro, tímido e conciso, brotou implacável de minhas narinas. O segundo já veio mais robusto e audacioso, fazendo com que as pessoas me olhassem com inconformismo e repulsa. O terceiro chegou tão avassalador e prazeroso que arranquei a máscara e ainda soltei uns urros orgasmáticos, coçando a cara inteira com agressividade. Era apenas rinite, alergia de tanto álcool gel (me lambuzei inteira, incluindo a face), mas a sala de espera esvaziou completamente. A triagem antes da sala esvaziou completamente. As ruas, os bairros, o país. Fui abandonada à minha própria sorte.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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