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    Tati Bernardi

    O milagre do demônio

    29/04/2016 02h00

    Quem me lê sabe que passei por um período de achar enfastiante alguns excessos tolos do discurso feminista. Era blog falando que "O Último Tango em Paris" é a epopeia de um estupro (sorry, é uma obra-prima); era texto falando que Malu (felizona em Lisboa, cantando) tinha sofrido grave assédio de um maior de idade felpudo; eram militantes com nojo do assovio do motoboy aturando os piores machismos do marido rico; eram moças que só deram o sangue pro laboratório Fleury culpando o branco opressor por cada pum que não deu certo em suas vidas. Tudo isso, a meu ver, tirava o foco dos estupros reais, dos assédios reais e da falta de oportunidades reais.

    Talvez eu tenha cometido o mesmo erro da época da escola. Era tanta gente mala que amava o Bob Marley, que eu achava mais prático ser contra. Vou gostar da mesma banda daqueles meninos que usam 134 pulseiras de pano no braço e não sabem falar? Até que já mais velha, sozinha, comecei a ouvir um disco e comprei todos. Nunca mais quero tomar a parte pelo todo, numa espécie de "ignorância sociometonímica". Bati, apanhei, me arrependi de metade do que eu disse, não me arrependi da outra metade, tornei a me arrepender de ter me arrependido da primeira metade. E assim seguiu a vida, até que assisti ao voto da Câmara, até que as palavras "Deus" e "família" começaram a perfurar a boca do meu estômago. Até que, depois de mil anos sem vomitar (tenho fobia extrema) um jato tão intenso quanto emergencial, labaredas ácidas e cálidas do inconformismo, pintou o chão do meu banheiro com a frase FORA CUNHA em azedo neon. Um splash vendendo o cansaço gritante de uma vida barata.

    Até que "tchau, querida" me pareceu muito mais do que insatisfação de fundo gerencial. Aquilo era sim um "tchau, mulher". Nós, soldados de Deus, pênis divinos, machos soberanos, com empresas em nome de Jesus, vamos dizer às nossas esposas (do lar ou miss bunda Miami ou zoião cocainado fio terra, não importa, foquemos no mal maior) que estamos cuidando de tudo "que realmente importa" porque é isso que os homens fazem. E o que realmente importa pra eles é que a mulher pobre brasileira continue morrendo pra fazer um aborto, continue dando metade do seu salário (inferior ao do colega) para os pastores que continuam não pagando impostos, continuem com medo de dentes arrancados, choques e pau de arara. O que importa é que os gays continuem apanhando e que suas salivas sejam testadas como arma nuclear contra a nação. O que importa é que os pobres, em nome da família (dos deputados, claro!) continuem pobres.

    Quando existe o trio Cunha, Feliciano e Bolsonaro (e tanta gente que pensa como eles), não dá mesmo pra perder tempo com "bode" de trechos específicos de um proselitismo que, apesar das minhas restrições (e, sinceramente, que se danem elas nesse momento), vende apenas chatura, quando, do outro lado, têm demônios vendendo mortes, ditaduras e torturas. O Habib's achou que iria unir o Brasil mas, ledo engano publicitário, foi o Cunha! Quando vi a "Veja" contra o coisa ruim, não tive mais dúvidas. Não foi Deus que voltou pra nos salvar, foi o demônio. Vem patinho, abraça a foice e o martelo. Vem Regina, abraça a Sabatella; vem lista VIP do Itaim, abraça a lista do boicote aos intelectuais! Vem feministas, eu estou pelada e peluda! Um Brasil inteiro gritando FORA CUNHA!!! Vai ser bonito, minha gente.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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