Já faz três meses. Acho super quebra clima nu não ter acento. Ia discorrer sobre "agudo", mas você viraria os olhos: "Jogo de palavras, fraco". Das sete às oito e meia? Te faço um sanduíche só para o seu sabido mau humor não apressar o seu conhecido desprendimento. Uma vez que uso as palavras de uma maneira que te agride e você usa os ouvidos de um jeito que me ofende, tentemos diferente. Gosto muito do seu queixo e gosto bastante dos seus joelhos e se vejo em você tantas pontas, imagine se não posso acomodar os buracos. Seus quadrados de pele sem textos, podemos usá-los. Apesar do som deles, apesar do gravado deles na minha cabeça vir com suas letras, apesar do hálito e das pontuações e dos sopros de enfado serem suas frases borradas, eu gosto da simplicidade acéfala dos seus pedaços.
Tem quase um ano. Não precisamos jantar, vestidos, ambiente público, conversar. Eu falo coisas que você depois usa contra mim, não à toa "pregar" também significa um discurso apaixonado. Eu gosto demais da sua voz. Nossa, teve uma vez, por telefone, você me ensinando um lance de "tira essa frase pra não parecer que você quis" que eu fiquei espremendo o cós da calça e as pessoas na rua riram. Você me leva tão a sério que diz com todas as palavras, mas também com cotovelos, dentes e ombros: não dá pra te levar a sério. E então, quando vejo essas suas partes, e penso nelas nuas, e penso nas frases que poderiam legendá-las. Seus cantinhos sussurram uma maldade educada, fina, ocupada. Seus ossos estalam uma vogal fechada.
Nem sei quanto tempo faz. Outro dia pensei que você, mesmo pelado, parecia estar de terno apertado, casaco de neve, roupa de astronauta. Meu lance com você nunca foi sexo. Você é comum, preguiçoso. Também não foram as coisas que você disse e nem como disse. Nem é você. Já foram tantos que não eram nada, eram angústia, aflição, medo de morrer. Não é nem questão de homem. Não é nem questão de ouvir sua voz. Ou de ouvir sua voz pelado. Ou de estar pelada ouvindo sua voz pelado. Ou de estarmos pelados ouvindo nossas vozes e fazendo coisas com partes dos nossos corpos que não falam. Mas as partes sempre ficam guardadas na minha cabeça com alguma coisa que você disse, já falei. Mas entenda, não é importante. Você acha muito importante e por isso diz com todas as letras e partes do seu corpo, recheadas das suas palavras, que não. Mas esquece. Uma hora e meia, talvez menos. Você nu, mesmo sem parecer. Nem precisa ser agudo o sentimento.
Hoje faz cinco anos. Tava sol, mas tava frio. Você estava com a camiseta branca de mangas compridas que tem uma mancha amarelada no sovaco. Você estava fumando com a boca imensa que eu nunca esqueci, porque ela sempre dizia coisas querendo me diminuir. E eu queria mandar você morrer cem vezes, mas o fato de uma boca imensa dizer coisas que me faziam minúscula era tão explosão de sentimentos díspares que eu só pensava em sugar a sua saliva pra dentro do crânio. Eu mandei um "alô" do tipo que só levanta metade do braço, uma mão meio murcha. E você mandou um "ei" do tipo que só levanta as sobrancelhas metade do que poderia, um empinadinho de queixo. E eu fiquei pensando nas partes do seu corpo que nunca vi e nas coisas que você nunca disse com a sua voz que esqueci. E cheguei à conclusão, porque eu estava tão arrepiada e morta e tremendo e pulsante e embaixo dos seus sapatos que não aquecem os pés porque não combinam com meias, que todo seu esforço pra não existir é que é minúsculo nas minhas mãos.
É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.