Serginho, 41 anos, queridão, mas com alguma tristeza no olhar, beija os filhos, diz "tô indo" pra mulher, deixa na portaria um documento que vão retirar, pega um Uber porque é seu rodízio, percebe que é mais um motorista de Uber que não sabe a diferença entre esquerda e direita, manda uma mensagem de voz porque está com tendinite, confirma que estará na reunião das nove, confirma que estará na aula de espanhol ao meio-dia, confirma o almoço com o cara da empresa concorrente, liga pro gerente pra pedir uma transferência da jurídica pra física porque hoje é dia de pagar o dentista, o psiquiatra, o fisioterapeuta, o acupunturista, o plano médico de sete membros da família, o hotelzinho em que o cachorro ficou no fim de semana em que a família foi para um hotelzinho que não aceitava cachorro.
Serginho agora está parado em frente ao prédio. Doem pescoço, peito, estômago, joelho esquerdo. Ele odeia aquele trabalho, mas odiaria voltar pra casa. A reunião começa em cinco minutos, mas ele sente que vai ter algo intenso em quatro. Não sabe se é crise de vômito, de enxaqueca, de pânico, de hipoglicemia. Ele pega outro Uber, esse agora não sabe onde fica o Ibirapuera, mas o Waze sabe. Mas ele não sabe usar o Waze.
Deitado na grama, Serginho desmarcou, pela primeira vez em 41 anos, um compromisso. Ele não foi na reunião. Ele se mata de rir com cada pedacinho: des, mar, cou. Ele sente algo mais bonito e certamente mais duradouro que um orgasmo. Nada dói. Ele tem vontade de virar cambalhota, mas vamos aos poucos. "E se". Meu Deus, esse pensamento espalha pelo corpo de Serginho centenas de formigas elétricas. Ele precisa de mais. Ele experimentou uma droga fortíssima. Serginho desmarca sua aula de espanhol.
Está feito um doido agora correndo pelo parque. Rindo, a camisa semiaberta. Babás fogem com os carrinhos de bebê. A hora que passar o efeito, ele vai injetar mais. E depois mais. Até o fim. Ele nunca mais quer suas dores, só o efeito maravilhoso desse entorpecente. Compra um cachorro quente, come de forma a sujar toda a cara. Quer sentir a mostarda ardendo seus olhos e revirando a paisagem. Serginho desmarca o almoço. Serginho desmarca, agora em proporções grandiosas, porque eram compromissos de meses, o dentista, os médicos da cabeça, os médicos da coluna.
Cancela a conta no banco, cancela o plano médico, cancela o casamento, eu tava comendo a Clarinha, Dora. E antes dela o departamento inteiro. E também todas as mulheres das empresas fornecedoras. Mas já há muito desmarquei com todas elas. Cancela os filhos, cancela a casa, cancela o resto da família, cancela, pela primeira vez com algum pesar, o cachorro.
Serginho desmarca seu compromisso com a sociedade e agora assusta casaizinhos com seu membro balangando. Mas ele precisa de mais. Todo o dinheiro que tem na carteira dá para um mendigo, percebendo que o cheiro da desistência já não ofende. Picota os cartões e a identidade. Cancela sua existência de forma federal, municipal, estadual, internacional. O efeito passou e ele quer mais. O que poderia fazer agora pra se desmarcar da humanidade? Se matar seria pertencer ao grupo dos suicidas e ele não quer pertencer a nada. Ele precisa de mais. Ele grita, rola na grama: mais, mais!
Internado em um hospício, Serginho tem consulta às quatro e meia, terapia em grupo às seis, terceira rodada de remédios às sete e horário livre pra TV até às oito.
É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.