Everett Kennedy Brown - 1.jan.2016/Efe | ||
Japoneses saúdam o primeiro amanhecer do ano em Chiba, no Japão |
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Colunistas
Tuesday, 24-Dec-2024 10:49:21 -03Tati Bernardi
Quarta de manhã fui muito feliz
29/07/2016 02h00
Na última quarta-feira fui insuportavelmente feliz. Eram nove da manhã quando aconteceu e, apesar do estranhamento, deixei rolar. Estava calor e minha varanda foi invadida por um solzinho que esquentava, mas não deixava a pele manchada estilo "novela Velho Chico". Coloquei a cama da minha cachorra ao meu lado e, ao vê-la se esparramar em tons dourados, fui obliterada por uma onda de paz e regozijo tão avassaladora que até meu sarcasmo desistiu de comprar a briga. Acho que fechei os olhos e sorri, mas não contem pra ninguém.
Eu estava sem gastrite depois de ininterruptos três meses sentindo facadas na boca do estômago a cada refeição (ainda que fosse um chá de hortelã orgânico). Apesar de contar três pares de tênis sujos espalhados pela sala e de ele ter comprado outro gorro, eu não queria esfaquear meu namorado-esposo pela primeira vez no semestre. Eu não estava com a tendinite macabra que vai da escápula até a nuca me dando enxaqueca e labirintite. Tem também uma dor do lado esquerdo da lombar (meu corpo compensando tanta tendinite do lado direito) que havia desaparecido naquela manhã.
Eu estava lendo "Meu Nome é Lucy Barton" (da escritora do espetacular "Olive Kitteridge") e gostando demais. Eu, provavelmente por ignorância, tenho preferido seriados a livros –e não me perdoo muito por isso. Fico muito feliz quando gosto de um livro a ponto de passar dias sem ligar a televisão. E mais ainda quando um livro narra as insociabilidades e obsessões de um personagem e não 20 páginas de uma árvore outonal frondosa e resplandecente que foi palco de uma cena misteriosa que acontecerá quando você já tiver desistido do livro e colocado no mais recente e genial seriado da Netflix ou da HBO.
Comprei uma caixinha de som que funciona por Bluetooth e amigos me deram dicas maravilhosas pra ouvir no Spotify: Zaz, Jam e Jun Miayke. Fiquei tão comovida que arrisquei passinhos de dança enquanto amassava a banana e ousei pensar: "Talvez não me dê azia". Era uma manhã tão abençoada que, talvez (temi confiar tanto e depois quebrar a cara), eu não tenha nem azia.
Fiz o checklist das desgraças usuais e estava com nota boa em todas. Dez dias sem brigar com a minha mãe, apesar de tanta tentação, 20 dias sem brigar com nenhuma empresa apesar de a NET me deixar louca, quase um mês sem atrasar a entrega de nenhum roteiro, quatro dias sem desejar ebola pra nenhum diretor financeiro de produtora de cinema, uma semana sem querer sair nua na Paulista com o cartaz "como é que os planos médicos conseguem ser tão escrotos com os idosos?", oito horas realmente aceitando as dificuldades impostas pelos rodamoinhos do meu cabelo e um mês e pouco sem pegar a virose da semana. Meu bruxismo não tinha no que se agarrar e fiz até uma selfie do que seria um esboço do meu maxilar sem impulsos assassinos.
Abri meu "mat" de pilates e pensei que agora me cuidaria muito. Seria equilibrada sem precisar de remédios e engravidaria com a coragem dos que seguem apesar de um amor tão abissal. Teria uma família apesar do pavor de virar uma tia gorda reaça com varizes e recalques. Talvez eu faça uma viagem amanhã e me aventure e me sinta sempre muito calma e corada. Talvez eu ande nas ruas sem recear tanto por minha carteira, vagina e poros. A vida é boa, gente! Quando deram nove e meia uma gravação da Hortência, do basquete, tentou me vender ômega 3 pelo telefone. Voltei ao normal.
É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.
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