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    Tati Bernardi

    Beijo, não me liga

    16/12/2016 02h00

    Passei boa parte da vida enfiada no meu quarto pendurada ao telefone. Minha mãe esmurrava a porta, me deixava de castigo, mostrava a conta implorando por piedade. Mas aquele era meu vício. Horas por dia, vários amigos e quase sempre o mesmo tema.

    Mas assim como o assunto "homens" um belo dia perdeu o reinado absolutista, ligar para alguém (ou receber uma ligação) se tornou bastante obsoleto no meu dia a dia. Às vezes chego a pensar até mesmo em falta de higiene. É como cutucar alguém enquanto falamos ou jorrar pequeninos cuspinhos quando contamos, excessivamente animados, uma história. Sempre que alguém me telefona eu sinto aquele pedaço de arroz que migrou da língua ansiosa de outrem e pousou no meu purê de batatas. Não é legal.

    A mensagem de voz pelo WhatsApp é a invenção mais maravilhosa já criada pelo homem egoísta. Você fala sem ser interrompido. Você grava mil áudios sem ser interrompido. É maravilhoso. Pra que ter um interlocutor quando podemos nos maravilhar com nosso próprio papinho? E depois ficamos ouvindo nossa voz, nossas ideias, concordando com a cabeça, rindo com nossas piadas, se arrependendo bem gostosinho de sermos "assim mesmo". O outro escutar e responder é secundário, estamos bastante envolvidos com nossa existência.

    E quando recebemos um áudio, podemos pausá-lo quando estiver incomodando ou ouvi-lo mais tarde ou nunca ou cem vezes se for uma voz máscula e assertiva e um tanto rouca. Podemos encaminhar o áudio perguntando pra um terceiro elemento o que pensar daquelas palavras. Podemos botar o áudio pra terapeuta ouvir. Ou seja: é todo um relacionamento com outro pautado apenas pela sua neurose e solidão higiênica. Editado e cortado pela sua disposição e desejo. E sem o insuportável toque do iPhone que sempre me desconcentra, irrita, atrapalha. Sério mesmo que você preferiu cuspir arroz no meu purê quando poderia apenas ter me mandado uma mensagem? Telefonar pra alguém é falta de educação.

    Outra maravilha da tecnologia depressiva: poder continuar amigo de alguém que você curte apenas por UMA coisa e não pelo conjunto da obra. Tem gente que você gosta apenas porque te manda memes bizarros. Mas você não quer almoçar com essa pessoa. Tem gente que você tolera apenas porque tem carinho da época da escola. Mas você não quer jantar com essa pessoa. Então você mantém contato com esses pseudoqueridos (uma vez que daria uma dorzinha ignorá-los por completo), mas não precisa tomar banho e sentar retinho numa cadeira pra ouvir duas horas de baboseira em um restaurante brega (geralmente eu desencano de ver ao vivo quem gosta de lugar brega).

    Desaprendi a ser falsa no telefone. Antes eu ria de piadas horríveis de parentes, mostrava consternação com fofocas insignificantes e passava uma hora tentando explicar pra uma amiga que o cara estava cagando um imenso cajado alado pra ela. Hoje em dia faço aquela voz de "profundamente entediada e invadida" e não sei como parar de ser indelicada. Geralmente escuto "tô te atrapalhando?" e respondo "manda um áudio que eu juro que te dou atenção depois". DEPOIS é a única liberdade possível. Sério que vou ter que dar minha opinião AGORA e não quando estiver disponível e a fim? Por favor, não interrompa meu dia.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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