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    Tati Bernardi

    A delícia que é espezinhar parentes

    06/01/2017 02h00

    Minha mãe chegou em casa no exato momento em que eu falava mal dela. Subiu sem avisar. Entrou sem bater. Sentou-se sem fazer nenhum barulho. Calou, prontamente, a cachorra com comida. E ficou de camarote, assistindo sua derrocada. Acho que tomou café.

    Eu estava na varanda, com meu pai ao telefone, e nós ríamos e nos ocupávamos com a única real delícia da vida, que é espezinhar um parente na proteção de uma perversa cumplicidade. Adjetivos simplórios não enchiam a boca. A riqueza de detalhes, inclemente, era entrecortada por minhas imitações debochadas de seus lamentos e terríveis premonições referentes à sanidade de qualquer desconhecido.

    Mamãe não avisou que vinha. Não deixou o porteiro avisar que estava subindo. Não permitiu que minha cachorra lhe fizesse a devida "festança exclusiva para visitas". Não me perguntou a respeito do sofá ou da xícara. Serviu-se da minha casa e da minha crueldade como se fossem suas.

    Meu pai urrava de felicidade do outro lado da linha. Aquilo era muito melhor do que o barbeador sem fio e a caixa de som bluetooth (presentes que havia ganhado de mim e tinha ligado pra agradecer). Fale mais, por favor, era o que me "diziam" suas pausas pra limpar o catarrinho e recuperar o fôlego. E isso, e aquilo, e mais essa. Eu poderia passar uma vida transformando todo mundo em caricaturas dementes e insuportavelmente fidedignas.

    Mais tarde eu iria até a casa de minha mãe e falaríamos mal de meu pai. Isso a alegraria muito e eu, bondosa (e ainda tomada pelo espírito de Natal), não lhe negaria tamanho júbilo. Mais tarde ainda meus pais se ligariam e falariam mal de mim. Era a já sabida e rotineira ciranda macabra do pertencimento. A condição para estar dentro de uma família era poder negá-la sempre que abrisse uma brecha. A grande balada da genealogia precisa de uma espécie de "falamaldrómodo" onde podemos, protegidos pelo ar livre e outros semelhantes em angústia, baforar nossos vícios e neuroses.

    Fiquei bem pouco preocupada se algum vizinho escutava tamanho deleite condenável e, por isso, não baixei a voz. Eu caminhava pela varanda catando as folhinhas secas que se agarraram frouxamente às plantas sedentas. Quanto mais eu destruía mamãe, mais eu limpava os esgalhos mortos. A maldade ganha um ritmo tão rápido que, às vezes, brecar pode ser perigoso. Percebi um vulto na sala e, em vez de encerrar a conversa num breque seco, em vez de capotar aos olhos sempre tirânicos de mamãe, escolhi fazer a fina.

    Tardei as palavras. Lerdeei o derrame. Procrastinei o susto. Espacei o vexame. Ainda falei mais umas duas ou três "coisas más" daquela senhora e, sorrindo, muito calma, lhe fiz o sinal italiano de "máqueporracetáfazendoaqui" com a mão. Mamãe soube naquela hora que, se me devolvesse a exata inflamação que lhe corroía, eu jamais teria o preciso sofrimento por ela sonhado. Então ela apenas ficou triste. Os olhos encheram de lágrimas. Não falou nada e ficou triste. De uma tristeza que jamais esquecerei e que me esmagou cada milímetro do corpo. De uma tristeza que me implodiu por dentro e, como um prédio inútil de mil andares, eu fui desabando até ser inteira um amontoado de pó depositado em uma unha podre de dedão do pé. Que mulher maravilhosa, aprendi tudo o que eu sei com ela.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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