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    Tati Bernardi

    Porque, porque, porque, porque

    20/01/2017 02h00

    Tati Bernardi/Folhapress

    Porque eu subi no bidê para me olhar no espelho e meu avô teve medo que, como sempre, vaidade terminasse em queda, me disse que eu era a menininha mais linda do mundo (e que, portanto, parasse com o costume de averiguar). Mas, lá pro meio da frase, ele acabou acreditando que eu era mesmo muito bonita e é essa parte, esse lapso de amor, que eu lembro sempre que subo em qualquer lugar (ou vejo um bidê).

    Porque a manicure contou que perdeu dois filhos, um de acidente e outro de suicídio, tem irmã com Aids, pai com demência, diabetes, cisto suspeito no seio esquerdo e uma alergia nervosa na perna que lhe dá feridas, eu estou há duas semanas sem fazer a unha. Não consigo mais voltar lá e não consigo mais não voltar lá.

    Porque meu pai uma vez recortou do jornal uma foto com filhotinhos de gatinhos e cachorros e me deu, e eu já era adulta, nunca mais superei sua doçura. Por todos esses anos (depois do recorte e antes do recorte), meu pai falou mal de muitas pessoas, comprou livros sobre a Segunda Guerra e simpatizou com políticos de direita. Apesar disso, quando o vejo, minha cabeça fala "é o homem dos recortes" e então saio pegando coisas pela minha casa e dando de presente pra ele.

    Porque minha avó Maria sempre fazia dancinhas quando eu estava triste, agora eu mesma faço dancinhas pra mim, quando estou triste. Às vezes não lembro, nem sei por que faço a dancinha, mas no fundo eu sei. Porque minha mãe tem voz de menina jovem e avassaladora de corações, eu sempre me assusto quando ela diz "tropecei" ou "vou fazer 70 anos". Preciso colocar post-its pela casa, lembrando de perguntar como anda mamãe e se ela precisa de algo.

    Porque uma vez eu estava andando no parque Piqueri, no Tatuapé, e um velhinho de mil anos era muito fofo e muito italiano e me lembrou meu avô, eu lhe acenei como se acarinhasse o ar. O velho correu atrás de mim, querendo me beliscar a banda direita da nádega. E o velho dizia "vamo ali naquele quartinho". Estranhamente tinha mesmo um quartinho no meio do parque. O empurrei, sai correndo e nunca mais sorri pra velhinhos (mentira). Naquele dia, minha boca entortou de nojo e desenhei o que seria, muito em breve, o meu sorriso cínico.

    Porque os dois porteiros do meu prédio são muito amigos e o mais velho tem uma moto e o outro, mais magrinho, uma mobilete, eu fiz uma foto deles juntos e motorizados e fiquei feliz e eles também ficaram. O mais magrinho fez um joinha, o outro apenas cara de mau.

    Porque a voz de quem vende coisas de telefonia é chata e a forma como elas falam é chata e o que falam é muito chato, fui grossa mesmo sabendo que me daria muita culpa. A culpa durou só alguns minutos porque tenho uma fila imensa de outras culpas pra sentir em um dia.

    Porque eu aprendi que tem que sentar nos dois ísquios com o mesmo peso, comecei a fazer mais força pro lado direito (porque estava pesando mais o esquerdo) e agora estou torta pra direita. Talvez seja impossível ter a bacia equilibrada porque talvez seja impossível que qualquer coisa seja equilibrada.

    Porque Pedro agora tem uma pequena pancinha (que escapa de leve da camiseta quando ele vê TV), tenho certeza que sou casada. Tinha pavor de uma vida igual a de todo mundo mas, como passei a ter fetiche na pequena pancinha, entendi que sempre terei minhas histórias como refúgio.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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