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    Tati Bernardi

    Quantos anos tem o narrador do filme da sua vida?

    03/02/2017 02h00

    Arquivo Pessoal
    A colunista Tati Bernardi quando criança
    A colunista Tati Bernardi quando criança

    Talvez você não tenha um narrador dentro da sua cabeça. Talvez só os mais neuróticos tenham. Talvez eu só precise de (mais? Menos?) remédios. Mas caso você saiba do que eu estou falando, me conte: quantos anos tem a voz "off" do filme da sua vida? A minha ainda não saiu do primário.

    Como vivem os adultos? Me pergunto todos os dias ao acordar. O que de muito saudável eles comem no café da manhã? Como se sentam impecavelmente à mesa de forma a não doer a lombar e nem a cervical? Como atravessam o dia, com tantas crianças mendigando em suas janelas, com tantos coleguinhas tentando derrubá-los, com seus paletós quentes e saltos altos?

    Não precisam de Omeprazol? Não precisam de Efexor? Não precisam de Miosan? Estendem longas mãos adultas que dizem não a açúcares? Dormem de pijama sensual de seda, com rendas e alcinhas, e não acordam gripados? Nunca saem atrasados, de cabelo molhado, culpados por não terem lido o jornal ou mastigado calmamente? Como suportam o cheiro do mamão? Sabem o que é pós-verdade?

    Eu acordo todos os dias enjoada, procurando o quarto da minha mãe. Todos os dias me assusto ao ver meu marido, a casa que comprei, minha mesa cheia de trabalho, os peitos menos empinados. Preciso de no mínimo uma meia hora pra me recuperar, por isso fico quieta. Não estou mal-humorada, estou me restabelecendo do susto de ter quase 40 anos. Sim, quero filhos, tento tê-los. Dizem que amadurece. Será? Ou será que mães são apenas crianças mais velhas e sem tempo? Acho que os velhinhos são apenas crianças muito velhinhas e com tempo.

    Desisti de uma ponte aérea, uma vez, quando já estava na fila do embarque. Mas por que a senhora não pode embarcar? Respondi que um parente havia morrido "de última hora". Mentira. Eu não embarquei porque crianças não deveriam viajar desacompanhadas. E eu não tinha nenhuma cartinha do meu pai me liberando. E aquilo, de ter cinco anos e estar fantasiada de 30 e poucos, me deu uma solidão tão avassaladora, que precisei correr pra casa. A viagem era pra fechar um acordo que me possibilitaria comprar umas 500 casas da Barbie. Talvez isso tenha me assustado tanto. Eu não tenho espaço pra tantas.

    Semana passada uma grande amiga, da minha idade, morreu. Quando me deram a notícia me senti no parquinho da escola. Sozinha no gira-gira, a professora tentando explicar o que é a morte. Não adiantou. Perguntei pra minha mãe e ela tentou me explicar. Não adiantou. Eu não entendi até agora. A cada meia hora lembro que minha grande companheira de "não entender exatamente como é ser adulto" se foi. Nós tínhamos exatamente a mesma coceira na perna, no exato mesmo lugar, quando ficávamos ansiosas demais. Foi essa coceira que nos aproximou, no primeiro ano da faculdade: "Ah você também é ansiosa?". "Opa, sou". "Que legal, vamos no Espaço Unibanco"?

    O Antonio Prata, por exemplo: um adulto. Sua próxima coluna deve ser sobre os boçais do buzinaço em frente ao Sírio. Ou vem aí um texto sobre a peninha que alguns manifestaram ao saber que Eikareca talvez tenha que obrar em um buraco no chão. Imagino Antonio madurão, digitando em seu teclado de homem madurão. E eu aqui falando de gira-gira, cercada de canetas de ursinho.

    Como é não ter no cérebro uma rádio sintonizada no jardim 2? Como é não se sentir quase sempre uma criança assustada, vestida com roupas enormes e caras, teatralizando fomes e vozes e ossos e amores e empregos e indiferenças?

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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