• Colunistas

    Saturday, 27-Apr-2024 20:08:13 -03
    Tati Bernardi

    Bis

    24/02/2017 02h00

    Durante o recreio, comendo um Bis que estava meio derretido, pensei que poderia ficar louca.

    Eu estava sentada no pátio da escola com algumas amigas e olhava para o antebraço delas: se movendo da boca até a comida, da comida até o cabelo, do cabelo até a parte de trás das orelhas. Eram trechos de ossos, revestidos de pele, bem firmes na função simples e controlada de serem antebraços.

    Vi uma professora caminhar com a típica curvatura (de pescoço) de quem está absorta em bons pensamentos, vi pessoas desembrulharem maçãs em papéis-alumínio e as achei bem mais prontas do que eu e meus queijos em papéis toalha. Vi uns garotos limpando o suor da testa nas camisetas ainda mais suadas. Vi tudo isso como se eu estivesse na parte de fora do vidro.

    Vai me dar aquele negócio que depois passa. Você sabe que na hora parece a pior coisa do mundo e em 20 minutos parece uma bobeira sem tamanho. Mas e se dessa vez a coisa grudar em mim pra sempre?

    Que triste para meus pais, que triste para os livros plastificados e etiquetados com meu nome. Uma aluna da quinta B, uma garotinha meio bonitinha até, com família, amigos, presilhas de cabelo. Ficou doida de pedra. Como é que Deus apronta uma dessas?

    Se eu ficasse louca, tudo isso que agora desfila pra mim, a marcha despretensiosa dos abstraídos, essa solenidade de dia de nada, de data qualquer, onde iriam parar essas coisas do outro lado do vidro?

    Quem iria me visitar? Existe louco que fica de boa em casa vendo TV? Mãe ama os loucos? Louco tem turminha que chama pelo interfone? Louco tem livro plastificado? Louco começa e não para mais até acabar?

    Pense em tiaras. Pense em xampus. Pense em pulseiras, walkman e macarrão. Não fique louca antes de outubro. Mude de assunto. Quando chegar dezembro a gente combina de não ficar louco até março. Louco perto do Natal é péssimo negócio. Louco na Páscoa só sendo muito louco.

    Dê nome pra loucura que ela deixa de ser. Sinta dor com nome que assusta menos. Caia na aula de educação física, rale o joelho, machuca menos fazer o que todos fazem. Desembarace os cabelos devagar, aos poucos, quando você perceber, acabou.

    Faça o papel do Bis virar um barquinho. Conte uma piada. Se os outros rirem bastante. Se a sua estranheza puder ser convidada. Pense naquela música da rádio. Uma fofoca e pessoas em volta. Vá até o banheiro, pare no bebedouro, leia algo na parede. O professor mais ou menos bonito, por ele. Os outros e o hino e tantas guerras e nomes de rios. Sujou um pouquinho da meia. Problemas com nomes são problemas e não loucuras. Sempre evitando que ela saia. Sempre segurando. Pelo menos até setembro.

    Não caia dura ou se chacoalhe ou berre. Não vomite só porque sei lá o que é isso impossível de digerir e nem quero saber. Vale a pena aguentar mais um pouco. Tem banho quente mais tarde e "TV Pirata". Mais uma prova. Mais uma festa. Sempre um pavor escondido, mas nem era nada disso. Sempre uma tristeza abafada, mas nem era nada disso. Sempre uma alegria exagerada que ninguém acolhe e, depois, o silêncio fazendo casquinhas em pensamentos inflamados.

    Um dia você será normal. Enquanto isso, se distraia com a professora que pensa nos prazeres de mais tarde, com os antebraços funcionais do intervalo, as crianças que trocam papéis de cartas importados (esses valem por dois), suores que insistem mesmo batendo em velocidade contra o ar. Talvez eles todos só existam porque percebem a menina comendo um Bis quase derretido.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

    Edição impressa

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024