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    Tati Bernardi

    A endoscopia: o ilustre enlace dos pombinhos Sedativo e Anestésico

    10/03/2017 02h00

    Há seis meses (na real há um ano, talvez três, na verdade não lembro de existir sem uma dorzinha no estômago) tenho todos os sintomas de uma baita gastrite. Tem dias em que um alface pesa o mesmo que um leitão e outros em que uma pequena mordiscada num chocolate me lembra o "harakiri". A dor reflete nas costas, a boca parece ter chupado mil balinhas de prego enferrujado e meu esôfago acusa forte insolação.

    Marquei e desmarquei a endoscopia umas sete vezes. Pensei em fazer a piada "dei o cano no cano", mas resolvi poupá-los. Sempre tinha uma reunião inadiável (mentira), um almoço com alguém que mora em outro país e não sei quando verei novamente (eles sempre voltam no Natal), uma pequena bolinha sinistra nas costas da minha cachorra (alergia a pulga), uma dor de cabeça que me deixava imprestável por dias (ah vá!). Eu simplesmente não aceitava esse corpo estranho, esse reality show do duodeno, do tamanho grosseiramente preciso de um metro (UM METRO!), entrando pela minha goela, indo até as profundezas das minhas necessidades mais dejetas... E a pior parte: tudo isso enquanto eu, inerte, aceitava a invasão, oralmente deflorada em consentimento mórbido, seminada, entregue tal qual uma virgem histérica e desmaiada à exploração anorgasmática de minhas cavidades.

    Flávio Florido - 29.nov.2003/Folhapress
    "O caninho flexível já minhocou no tobogã do bolo fecal de muitos desconhecidos"
    "O caninho flexível já minhocou no tobogã do bolo fecal de muitos desconhecidos"

    Se você parar pra pensar, e parar pra pensar talvez seja o único exercício aeróbico ao qual me submeto, não tem nenhuma condição de se fazer uma endoscopia. Pra começo de conversa, meu amigo, o renomado caninho flexível, por mais imerso em álcool que seja, já minhocou no tobogã do bolo fecal de muitos desconhecidos. E agora está todo serelepe trilhando sua flora. É tipo banheira de motel higienizada. Sempre tem um pentelho mandando um sincerão sobre nossa mundanidade, ainda que seja apenas na imaginação.

    Fiz a besteira de assistir a vários vídeos no YouTube. Não faça isso. Você sabe o que é a endoscopia. Mas saber é bem mais confortável do que ter certeza absoluta. O que os olhos não veem o ânus não sente. A pesquisa cinematográfica me causou tamanho pavor que meu esfíncter atingiu seu menor diâmetro em 38 anos. Nem fé passava por ali.

    A anestesista me avisou que se eu estivesse mentindo sobre o jejum de líquidos, o conteúdo voltaria e, não encontrando saída (uma vez que retirada do jogo eu não poderia nem tossir, nem vomitar, nem cuspir, nem gritar), a parada adentraria aos pulmões e poderia me levar a uma anestesia eterna. E eu vou lá saber se estou falando a verdade, minha filha? Em todos esses anos, mentir já foi tão acoplado à minha realidade que talvez, sim, eu tenha tomado uma aguinha antes de sair de casa. Só pra estragar tudo. Ou apenas porque me deu sede. Ou porque beber água é um troço automático pacas e não tem como lembrar ou controlar. Então, façamos assim: não façamos esse exame. Nunca. Jamais. Inclusive já estou curada de tudo.

    Você será obrigado a assinar um termo falando em perfurações, dentes quebrados, engasgos, reações alérgicas, sangramentos... Enfim, não passe por isso. Assine sem ler ou deixe a cargo de seu adulto responsável. Pedi abraços aos enfermeiros. Me despedi de mamãe como se fosse uma longa viagem de navio no século 18. De repente: acabou.

    Se a "Caras" realmente quisesse fazer a capa do casamento do século, estamparia o ilustre e maravilhoso enlace dos pombinhos Dormonid e Propofol. Se alguém nascesse do amor entre esses deuses, era o fim da psicanálise. Despertei falando: "Eu quero ser mãe". O exame não deu nada.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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