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    Tati Bernardi

    A velha louca

    31/03/2017 02h00

    Na última quarta-feira (29), em uma grande farmácia da rua Inácio Pereira da Rocha, na Vila Madalena, uma senhora de uns setenta e muitos anos entrou com uma receita médica e a entregou a uma das atendentes. Ela falava rápido, falava muito, e repetia sem parar que estava bastante aflita porque faria uma cirurgia no dia seguinte. A mocinha informou que não tinha aqueles remédios e, então, a senhora começou a gritar muito alto pedindo mais respeito. Pedindo que parassem de maltratá-la tanto e expô-la daquela maneira.

    Os bisbilhoteiros mais desinibidos correram pra garantir lugar no gargarejo do show, dava pra imaginar babinhas sabor caramelo escorrendo de seus olhos gulosos por rechaçamentos. Estava instaurada a promoção "leve 200 escovas coloridas Oral B e mais um pocket-espetáculo do horror pelo preço de uma escova colorida Oral B".

    Não ficou exatamente claro, a menos para mim que estava um pouco distante da confusão, se a funcionária fez algo bizarro como beliscar a vovó ou se tratava-se mesmo de um surto sem sentido (ainda que eu acredite que qualquer surto tem sempre milhares de sentidos o tempo inteiro, a vida toda). A única informação disponível que percorria todos os corredores tão bem aprumadinhos e claros e higienizados era de que "a veia" era mesmo fora da casinha.

    Um rapaz fortão chegou em defesa da atendente "ela só tá trabalhando, dona". Clientes engrossaram o coro em defesa da menina bonitinha: "Velha mal educada, sem noção... veia doida!". A senhora começou a tremer muito e dizer "vamos ali pra fora, vamos ali pra fora". E todos os funcionários da farmácia riam alto, a atendente coadjuvante do circo gargalhava descontroladamente, desconhecidos travavam intimidades instantâneas e esfuziantes na fila "gente, que velha louca é essa?", alguns balançavam a cabeça desaprovando (ou estavam tentando afugentar o pensamento de que somos todos feitos da mesma matéria que aquela senhora?).

    Eu fiquei imóvel, endurecida, chocada, arrebatada. Ter quase 80 anos, ter uma cirurgia pra fazer no dia seguinte e não ter o direito a ser maluca? Essa vida é de uma dureza cortante. A senhora saiu praticamente sob vaias. Sua última frase antes de abandonar uma plateia excitada com o ridículo do outro (portanto, fora de si) foi: "Vocês deveriam ter me ajudado". Sim, deveríamos. Meu Deus do céu como deveríamos!

    Esse texto é meu pedido de desculpas a essa mulher. Eu não ri, não vibrei, não fiz amigos. Eu senti compaixão, amor, empatia, afinidade, vontade de abraçar a senhora, saudade dos meus avós, impulso de sair pela cidade perguntando se alguém precisava de ajuda pra não ficar louco. Ou pra ficar louco. Ou companhia pra não enlouquecer sozinho. Eu odiei com todas as minhas forças cada funcionário jovem que zombou da senhora, eles esqueceram que têm mães, avós, tios, pais e, muito em breve, a visita permanente da própria velhice. No entanto, eu não fiz nada.

    Eu deveria ter invadido nua o quadradinho VIP dos remédios controlados. Deveria ter imitado um rinoceronte bebê alado chafurdando em algodões e fraldas. Deveria ter distribuído 49 supositórios besuntados em gel Dorflex Ice Hot para aqueles desgraçados todos que, unidos pela segurança de uma falsa sanidade, apontaram dedos tão debochados quanto acovardados. E se, ou quando, alguém ousasse rir, eu mostraria, por fim, tatuado em meu esfíncter não depilado, a única verdade que tentamos todos os dias mascarar nas ruas ou esfregar no banho: #somostodosvelhalouca.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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