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    Tati Bernardi

    Estar grávida é estranho

    25/08/2017 02h00

    Agora já acostumei com as pessoas me dando parabéns, mas antes até isso embrulhava o estômago (junto com sucos, sopas, carnes, massas, queijos, frutas, perfumes, amaciantes, outros humanos, ar, existir). Deveria ter recebido essas congratulações aos 22 anos, quando braços finos e peitos empinados formavam uma dupla fatal e imbatível nas festinhas. Os jovens merecem parabéns. Os solteiros, cheios de colágeno e vontades. Eu, sem entender o porquê de tanto cansaço, susto e mal-estar, só merecia (e queria) minha cama e o silêncio.

    Lá pelos quatro meses de gravidez, um dia, no banho, fiz carinho na minha barriga, balbuciei um instintivo "oi, meu amor" e senti, finalmente, a beleza daquela transformação superando os embaraços. Mas, antes disso, inundada por hormônios insanos, refluxos descontrolados e notando meus 50 quilos ganharem toneladas de uma preguiça doentia e desesperadora, eu só desejava que parassem de me chicotear com arregaçados dentes ditadores e me abraçassem: "Eu sei, estar grávida é estranho".

    Nunca foi tão assustador observar as hienas da alegria, os unicórnios da plena satisfação, os patinhos do controle supremo e os ursinhos do orgasmo eterno. Nas redes sociais, toda grávida é muito abençoada e emana apenas luz e lantejoulas da magnitude. Na minha família, ninguém enjoou ou teve angústia. No grupo de amigas, a automática devoção incondicional por dois risquinhos em um exame de farmácia transformava a agonia física de ter engolido um trem a seco na mais irrestrita satisfação.

    Eu chorava sem parar porque não conseguia ainda sentir o tal apreço avassalador, o tal deleite maior do mundo e, quando tentava emanar purpurinas aladas acabava, uma vez que o organismo estava descompensado, apenas peidando ou arrotando. Seria eu escrota, incapaz de amar, pior mãe do planeta, uma pequena sociopata?

    Tomei tanto Vonau sublingual que fiquei nove dias sem fazer cocô. As pessoas falavam "fui demitida justo quando comprei a casa" ou "ele me largou na missa de sétimo dia do meu pai" e eu pensava "nada pode ser pior do que não cagar, troca comigo de problema". Um dia, chegada do supermercado que fica na esquina, com uma leve sacolinha, o porteiro precisou me ceder seu banquinho: eu arfava como se fosse o fim. Além de me sentir com cem anos de idade e de ter sido agraciada com uma constante gana bipolar (mix de fome surreal com a necessidade urgente de golfar o planeta) padeci também de fortes enxaquecas e um sabor delicioso de chá de prego enferrujado na boca. O que tinham feito com meu corpo, minha vida, minha pressão arterial?

    Camaradas continuavam indignados, provocativos: "E você não está feliz?". Cheguei em meu psiquiatra tão combalida que ele, a pessoa mais chistosa que já conheci, não fez um único gracejo. Doutor, não consigo dar piruetas de júbilo ou regozijar em estrelas explosivas enquanto um mero purê de batata me der vontade de ejetar a alma. É normal?

    Quando, naquele banho, fiz o tal carinho na barriga, obtive a resposta. Você vai amar seu bebê, vai subir as ladeiras de Perdizes sem pressentir o bafo jocoso da morte, vai comer pizza sem parecer que sofreu envenenamento na Roma antiga e principalmente, vai trocar tanto medo pelo sorriso de uma filha. No mais, desejo aos tão centrados e exemplares e lépidos e prazenteiros, aqueles que sempre transam e vão a festas, que fiquem nove dias sem cagar. Grata.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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