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    Tati Bernardi

    O que eu queria ter dito

    13/10/2017 02h00

    Hoje, ao desejar sucesso para meu marido, o que eu gostaria mesmo era de ter dito "é complicado ter tesão por uma pessoa que não me ajuda a resolver o problema com o vazamento na área de serviço". Ao dar bom dia no elevador para uma senhora desinchada e, portanto, aparentemente bem resolvida de intestino, o que eu queria mesmo era ter dito: como você lida com o fato da tâmara parecer uma barata açucarada? Me contive, claro. Depois, ao atender minha mãe, o que me atrasou para a reunião, eu gostaria de não ter ficado em silêncio por 17 minutos, ouvindo a mesma história de ontem, e sim ter imitado uma britadeira elétrica por dez segundos e desligado. Não tive coragem.

    Ao chegar no trabalho, cruzei com Sarinha. Sarinha tem 27 anos e eu tenho uma tara específica por seus joelhos. O joelho da mulher com quase 40, meu caso, tem a pálpebra caída. Eu sei que isso não faz sentido, mas é o que eu diria ao meu joelho, se tivesse a cara de pau de lhe dizer a verdade. O joelho de Sarinha é aquele olhar aberto, quase esbugalhado. Sarinha, posso me ajoelhar agora e mordiscar suas patelas? Me empresta um menisco para amortecer a dor de ser diariamente nocauteada pela sua juventude? Fala cartilagem e colágeno no meu ouvido? Travei e apenas balbuciei "hoje o dia promete" e dei aquele suspiro clichê de "a vida não é fácil". Fingindo tensão cervical, ela concordou. Atenção, marido, mãe, pai, bebê, a verdade é que nunca sei, lá no fundo, se não gosto também de mulher.

    No Facebook, se eu tivesse mesmo atitude, faria um daqueles banners com corações cor-de-rosa e escreveria "sobre o mundo: não me importo tanto assim". Sabe, redes sociais, eventos sociais e biscoitos Club Social: a real é que estou chocada com a censura, abalada com a política, arrasada com o terrorismo, mas tenho "mais uma tentativa de nunca morrer" agendada às cinco. Essa obsessão pela pele, pelo fígado, pela bula. A minha derrocada, a minha falência, é o que na verdade toma profunda e exclusivamente meus pavores. O egoísmo num banner, em caixa alta, só isso.

    Esse restaurante arrogante caríssimo metidíssimo é um engodo, um lixo, é o que eu gostaria de cuspir, pichar com a minha bile, em vez de pertencer ao clubinho dos obcecados em engolir "o novo point". Pra que cacete agora existem essas lojas que você vê a roupa, experimenta a roupa, mas na hora de comprar "só vendemos pela internet"? O Sergio Mallandro é o gerente dessa porra? Por que quando eu falo "ai, que dor na lombar, que azia" tem sempre uma fadinha de Deus que aparece, de um bueiro alado, e fala "ah, mas você vai sentir tanta saudade". As mulheres confundem amar o filho com "venerar cada segundinho da úlcera gástrica que o constante vômito da gravidez causa". Gata, isso não é ser boa mãe, isso é ser trouxa. Podemos nos unir em nome da extinção do "iiiissoamm"? Sabe quando você pergunta algo pra menina que fez curso pra te vender algo com muita simpatia e ela responde "iiiiisssoammm"? Podemos fazer uma passeata nus na Paulista pelo fim da positividade solar debilmente alongada por exploradas vogais e consoantes nasais? Não curto Paul Auster, tiramissu, Wong Kar-Wai, Rio de Janeiro, "Game of Thrones" e festa de Ano-Novo. Eu não estava mal, eu só não gosto de você o suficiente pra assumir que estou bem o suficiente pra sair de casa.

    tati bernardi

    É escritora, redatora, roteirista de cinema e televisão e tem quatro livros publicados. Escreve às sextas.

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