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    Vanessa Barbara

    Pular, rastejar e rolar

    26/05/2013 02h30

    Andar nas ruas de São Paulo é como jogar Pitfall no videogame: o herói deve saltar uma poça de piche, desviar das baratas, esgueirar-se pelo meio-fio e pular em cima do jacaré, tomando impulso para apanhar um cipó. Se cair dentro do bueiro, não terá outra vida --a não ser que a imprensa resolva televisionar o resgate e um deputado queira explorar o drama familiar.

    No fim da minha rua há uma ladeira esquecida pela história, com parte da calçada tomada por carros estacionados e montes de entulho. O pouco que sobra para o pedestre é um paralelepípedo descolado do chão e uma faixa de terra com um tufo de grama da altura de um pinguim. Ali, torcer o pé é o que de melhor pode acontecer ao transeunte.

    Circulando pelo meio da rua, ele é acossado por caminhões de mudança, motocicletas desgovernadas, jipes, bicicletas, cachorros, um elemento suspeito que passa correndo e meninos empinando pipa com o fio cheio de cortante. O motorista ainda tira a cabeça para fora da janela e xinga: "Anda na calçada, pô!".

    Sair de salto alto é suicídio assistido.

    Em muitos lugares, a calçada é um conceito pertencente ao mundo das ideias, sem aplicação prática e materialização na esfera do real. Descendo a ladeira, há rampas em desnível para a entrada de carros na garagem --o pedestre precisa ser um atleta olímpico de 100 metros com barreiras, saltitando como uma fada enquanto tenta alcançar o ônibus que já parou no ponto.

    No Pitfall do meu bairro há postes no caminho, placas caídas e um boteco com cadeiras na porta, assim como nos bares da rua Maria Antônia, na Consolação, lotados de universitários com cervejas na mão, fumando e bloqueando a calçada. O segredo ali é passar de mochila nas costas pedindo uma licença geral --e tentando não fazer um "strike".

    Outra coisa que no Mandaqui pertence ao mundo das ideias é o semáforo para pedestres --existe em alguns lugares, mas poucos. A norma é olhar para todos os lados simultaneamente e correr pela vida --o que chamamos de esquema viário "segura na mão de Deus e vai". Os carros têm a preferência, ainda que esteja chovendo, e é bom torcer para não escorregar.

    Em certos lugares são construídas passarelas para pedestres, que por vezes obrigam o andarilho a dar uma volta imensa em zigue-zague só para atravessar a rua. Os automóveis seguem pelo caminho mais curto, as pessoas é que devem fazer os desvios. E fintar sacos de lixo, cocô, arbustos, pombos mortos, sofás velhos e pequenos roedores.

    Uma coisa é certa: a vida melhora significativamente quando o sr. Mutti apara a grama da calçada.

    vanessa barbara

    Escreveu até julho de 2014

    Jornalista, cronista e tradutora, é colunista do "International New York Times''. É autora de "O Livro Amarelo do Terminal" (Ed. Cosac Naify, Prêmio Jabuti de Reportagem) e "Noites de Alface" (Ed. Alfaguara). É editora de "A Hortaliça" (www.hortifruti.org).

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