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    Vanessa Barbara

    Decifrando itinerários

    29/09/2013 02h30

    Na coluna anterior, desvendei a precisão matemática por trás da numeração dos ônibus paulistanos. Agora pretendo abordar a lógica dos itinerários.

    A meu ver, tudo foi decidido numa reunião de cúpula da antiga CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos), quando alguns engenheiros de tráfego tomaram absinto e passaram a visualizar figuras míticas no mapa da cidade.

    Foi assim que surgiu o traçado da linha 177-H, que se assemelha a um dragão celta com pata de bode e cabeça de girafa. O coletivo vai do bairro de Santana ao Butantã passando, vejam só, pela Casa Verde, em 2 horas e 10 minutos de pura emoção (a certa altura você tem a nítida impressão de estar andando em círculos e reprime o desejo de jogar pela janela uma trilha de grãos de milho só para se certificar).

    No traçado do 8528 (Jardim Guarani/Praça do Correio), a inspiração foi um ofídio mitológico que solta fogo pelas ventas. Já o 477-P (Ipiranga/Rio Pequeno) é uma píton sinuosa que costura a região sul de uma ponta a outra -mas não em linha reta. Há uma volta no Sacomã que desafia a geometria euclidiana.

    Sem dúvida, o responsável pelo itinerário do 172-T tentou redigir uma mensagem de socorro que poderia ser lida do espaço, sobretudo quando o ônibus descreve uma parábola no Brás e desenha uma letra ômega na região da Vila Guilherme -então gira em torno de si mesmo, faz um balão brusco e sai a 800 metros de onde estava 15 minutos antes.

    A linha 828-P (Lapa/Barra Funda) prova que a menor distância entre dois pontos é um hipogrifo dando cambalhota; imaginativo, o ônibus leva 80 minutos para chegar num ponto bem próximo da partida.

    Para entender o caminho de um coletivo, às vezes basta ser versado em astronomia: o 117Y-10 (Pinheiros/Cohab Antártica) é uma homenagem à constelação de Ophiucus, uma das mais confusas do planisfério celeste. A linha vai da rua Sumidouro até o parque da Cantareira, passando pelo terminal Barra Funda.

    Por pouco não faz escala na Casa Verde, esse vórtice místico que atrai todos os coletivos.

    Minha sugestão é lançar um álbum de figurinhas com o itinerário das linhas paulistanas, como se fossem circuitos de Fórmula 1: minha coleção conteria o 875-A (Aeroporto/Perdizes), que é um número 3 enorme com um rabo de porco; o 702-C (Jardim Bonfiglioli/Belém), um gigante corcunda tropeçando no próprio pé; e o 178-T (Santana/Ceasa), aparentemente conduzido por um bêbado.

    Fato é que nem drogas pesadas podem explicar o trajeto alucinógeno do 312-N (Cidade Tiradentes/São Miguel Paulista), um ziguezague de eletrocardiograma com claros indícios de taquicardia.

    vanessa barbara

    Escreveu até julho de 2014

    Jornalista, cronista e tradutora, é colunista do "International New York Times''. É autora de "O Livro Amarelo do Terminal" (Ed. Cosac Naify, Prêmio Jabuti de Reportagem) e "Noites de Alface" (Ed. Alfaguara). É editora de "A Hortaliça" (www.hortifruti.org).

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