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    Vanessa Barbara

    Ventinho bom

    23/02/2014 02h30

    O pai estava postado de pé numa grade de saída de ventilação do metrô, na esquina da avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio. Em plena tarde de domingo, aquele senhor de bermuda marrom e camiseta branca —com as pernas um pouco afastadas e o corpo inclinado para a frente— cuspia para baixo.

    Ao lado do gradil, a mulher e o filho pequeno observavam. "Vem, Gabriel, vem com o pai aqui", ele chamou.

    O menino parecia receoso; a esposa não dava para saber o que estava pensando, mas incentivou o filho a ir até lá. E ficaram os dois de pernas afastadas, um do lado do outro, cuspindo no vazio.

    Ilustração Catarina Bessel

    Podem-se tirar inúmeras conclusões a partir dessa história; por exemplo, é cabível censurar o cuspe em família numa instalação pública ou filosofar sobre a natureza íntima do bafo que sai dos dutos de ventilação: suspiros e espirros de milhões de passageiros do transporte subterrâneo.

    Mas meu objetivo aqui é outro. E, para melhor ilustrá-lo, contarei uma segunda anedota: a de uma família inteira se divertindo numa dessas saídas de ar. A menina mal sabia andar e ainda assim tropeçava em círculos, maravilhada. O cachorro simplesmente estava sentado se refrescando, de olhos fechados. A mãe gostava de ver a saia inflar, como em "O Pecado Mora ao Lado". Nisso, uma madame passa e prende o salto numa das frestas. Mas ela consegue se desvencilhar da armadilha e segue andando.

    Nos gradis da estação Faria Lima, um dos mais violentos em termos eólicos, os taxistas estão cansados de ver moças desavisadas com a saia lá pelo pescoço. "Todo dia eu vejo muita calcinha", afirmou um deles, em entrevista a um jornal.

    E mais: certa vez amarraram as pontas de um plástico grande numa dessas grades, de modo que, ao ser inflado, o volume ficava parecendo um cachorro. Nos idos de 2008, em Nova York, o artista Joshua Allen Harris utilizou sacos plásticos e fitas adesivas para inflar esculturas na tubulação do metrô -sua obra mais comentada foi um pequeno urso polar que denunciava o aquecimento global, mas eu gosto especialmente de um monstro feito de saco de lixo com mais de quatro metros de altura. E da girafa.

    Quando eu era pequena, achava que no fundo do gradil vivia uma criatura misteriosa e ancestral, um Felino laranja que se alimentava de ver a cor das nossas calcinhas.

    Estou contando tudo isso por motivos que nem eu poderia decifrar. Talvez porque, neste calor, meu cérebro esteja precisando de um sistema de ventilação mais eficiente.

    vanessa barbara

    Escreveu até julho de 2014

    Jornalista, cronista e tradutora, é colunista do "International New York Times''. É autora de "O Livro Amarelo do Terminal" (Ed. Cosac Naify, Prêmio Jabuti de Reportagem) e "Noites de Alface" (Ed. Alfaguara). É editora de "A Hortaliça" (www.hortifruti.org).

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