• Colunistas

    Monday, 06-May-2024 05:30:05 -03
    Vanessa Barbara

    Histórias sem graça

    25/05/2014 02h00

    No romance "Garota Exemplar", o personagem Nick acusa a mãe de contar histórias "escandalosamente banais e intermináveis", sem propósito nem clímax. Por muito tempo, ele e a irmã acharam que estavam sendo sacaneados em segredo; mas não havia nenhuma moral ou entrelinha nas anedotas maternas. No fim, a brincadeira preferida dos dois virou contar longas narrativas sobre o conserto de equipamentos e o preenchimento de cupons:

    "Então eu precisava de uma pilha palito, que, descobri, é diferente de uma bateria, então tive que encontrar o recibo para devolver a bateria...", dizia uma delas, engatando numa epopeia sonífera.

    Ilustração Catarina Bessell

    É este o clima do site "História Sem Graça" (historiasemgraça.tumblr.com ), um dos melhores endereços de toda a internet. Trata-se de uma seleção de relatos aleatórios, absolutamente anticlimáticos —verdadeiras obras-primas do "E daí?".

    Como este, postado por um anônimo: "Sempre compro muçarela fatiada pra fazer sanduíche em casa. Outro dia comprei queijo prato. Não fez muita diferença".

    Ou esta, de teor similar: "Hoje passei condicionador antes do xampu pra ver se mudava alguma coisa, mas não mudou nada".

    O idealizador do site é o arquiteto paulistano Felipe Zene Motta, de 27 anos, que em fevereiro foi acometido por três inequívocas ocorrências sem graça e decidiu compartilhá-las. (São as três últimas do Tumblr, que envolvem incidentes na fila da padaria, na piscina e no banco.)

    Hoje já são 1.500 anedotas enviadas por leitores ávidos por comungar, em minúcias, as mais opacas situações. Minhas preferidas são as mais compridas e com certo ar resignado: "Eu trabalho numa central de telemarketing e o lugar onde a gente senta pra atender é chamado de P.A. Hoje estava sentado num lugar trocando ideia com uma amiga, aí veio uma moça e me mandou sair porque a P.A. era dela. Eu disse que não ia sair e perguntei se tinha o nome dela lá, ela disse que sim, e tinha mesmo".

    Muitas das histórias são registradas em letras minúsculas e às vezes contêm deslizes gramaticais, o que lhes confere um ar ainda maior de cansaço e desinteresse do próprio narrador. Um exemplo, com a grafia original:

    "esses dias lembrei de um amigo de infância, joão pedro, que mudou de cidade quando éramos bem novos, anos atrás. resolvi procurá-lo no facebook usando apenas esses dois nomes, já que não sabia a cidade em que ele mudou. encontrei vários, de várias localidades, mas nenhum se parecia com ele."

    Como se vê, é uma obra de gênio que revela de forma singular a essência da nossa vida cotidiana, esse ir e vir de ocorrências sem razão e sem rumo, de onde mal se pode tirar um sentido que não seja a perplexidade.

    "Sempre que eu abro a geladeira, meu gato entra correndo lá dentro e se joga no compartimento de legumes. Eu nunca vou entender o motivo."

    vanessa barbara

    Escreveu até julho de 2014

    Jornalista, cronista e tradutora, é colunista do "International New York Times''. É autora de "O Livro Amarelo do Terminal" (Ed. Cosac Naify, Prêmio Jabuti de Reportagem) e "Noites de Alface" (Ed. Alfaguara). É editora de "A Hortaliça" (www.hortifruti.org).

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024