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    Vanessa Barbara

    A vida enquanto caça ao tesouro

    06/07/2014 02h00

    Na rue de Charenton, número 442, próximo à place de la Bastille, a intrépida locatária se dirigiu ao interfone e digitou o código 7214, que abria a porta. Na entressala, localizou nervosamente a caixa de correios com o nome LEFEBVRE (no bloco da direita, lado inferior esquerdo).

    A caixa estava trancada, mas metendo a mão por baixo e forçando uma aba no fundo foi possível retirar de dentro um bipe eletrônico verde para abrir a segunda porta.

    Atrás da segunda porta, ela seguiu até o fim do corredor de pedra, onde existia uma escada oculta de acesso aos andares superiores.

    Ilustração Catarina Bessell

    O apartamento que aluguei pelo site Airbnb se localizava no terceiro andar, à esquerda de quem sobe. A chave estava escondida no vaso inferior da floreira mais próxima da janela, dissimulada sob uma folha de palmeira. Todas essas instruções me foram passadas por e-mail, e eu me senti verdadeiramente merecedora da honraria de abrir a porta.

    E fiquei a matutar por que na vida não se fazem mais jogos de caça ao tesouro, daqueles bem intrincados e compridos, de preferência com moedas de chocolate no final.

    Por isso utilizo este espaço para exigir das autoridades a promulgação imediata de uma lei garantindo a universalização de acesso à caça ao tesouro, um direito inalienável de todo cidadão, sobretudo nesses tempos em que direitos mais básicos estão sendo desrespeitados.

    Vejam: se é para prender sem motivos, que ao menos forneçam uma pista da delegacia de destino em forma de mímica.

    Se é para ceder à burocracia sem sentido, que o façam de modo divertido: o cidadão vai protocolar uma coisa qualquer e, no guichê amarelo, recebe um mapa. Precisa decifrá-lo com uma bússola e disparar em direção a outro guichê numa outra repartição, onde um funcionário vestido de mago lhe dará uma tarefa a ser executada em oito minutos. O cidadão é obrigado a fazer um curativo num morador de rua ou doar sangue, por exemplo, e o beneficiário da boa ação lhe entregará o formulário C65-F.

    Já um paciente do SUS em emergência médica deverá seguir as seguintes instruções, com vistas a ser atendido:

    1. Primeiro, no térreo do pronto-socorro, digitar no interfone a sequência de Fibonacci.

    2. Depois, no corredor, procurar um capacho onde está escrito: "chipotle". Haverá um número na porta levemente solto, atrás do qual se encontra um engenhoso grampo de cabelo que destrancará um alçapão.

    3. Entrar pelo alçapão, descer cinco lances de escada e, no 48º degrau, haverá um ovo.

    4. Dentro desse ovo, um filhote de dragão.

    5. Dentro do filhote de dragão, uma chave.

    6. Dentro da chave, outra chave.

    7. A chave dourada abrirá a porta de um consultório médico, mas só os puros de coração poderão ter acesso à terceira porta, esta realmente a entrada da UTI.

    vanessa barbara

    Escreveu até julho de 2014

    Jornalista, cronista e tradutora, é colunista do "International New York Times''. É autora de "O Livro Amarelo do Terminal" (Ed. Cosac Naify, Prêmio Jabuti de Reportagem) e "Noites de Alface" (Ed. Alfaguara). É editora de "A Hortaliça" (www.hortifruti.org).

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