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    Vera Iaconelli

    Enxurrada político-onírica no teatro de Gerald Thomas

    05/12/2017 02h00

    Duas mulheres nuas estão penduradas pelo braço, com os pés sobre dois pedestais nos quais mal se apoiam. De cima de cada uma jorra incessantemente um fio de sangue. Ao fundo um desenho alude a uma caravela. Estamos na senzala, na Inquisição, em Guantánamo, na ditadura militar ou na diuturna perseguição a transexuais?

    Não há conversa, corriqueira que seja, que não acabe na constatação de que vivemos tempos difíceis. As discussões atuais fazem supor que a humanidade já foi, em algum período, melhor que isso. Argumento difícil de sustentar, bastando lembrar Inquisição, escravidão e guerras para que capitulemos na defesa do passado. Mas temos que convir que hoje a questão do tempo é algo inédita. O descompasso entre o tempo externo, das redes sociais e o tempo interno, dos nossos afetos e de nossa compreensão é assustador. Tudo é rápido e é muito, é tudo muito rápido. Esse troço chamado modernidade não tem perspectiva de freio, nem amortecedor. Ainda assim, que o saudosismo não nos sirva de guia em direção à barbárie (lembremos o clamor de alguns pela volta ao regime militar!).

    Uma mulher corre em círculos entre pedaços de corpos chamando desesperadamente por alguém, ao som de metralhadoras. Outra mulher rega cuidadosamente um jardim de guarda-chuvas imprestáveis. Estamos em 11 de setembro, Aleppo ou na periferia de São Paulo?

    Os tempos do sujeito, tempos de cada um de nós para amar, odiar, desejar são incomensuráveis e regidos pelo nosso inconsciente. Quanto tempo dura o luto de um grande amor, o ressentimento de uma humilhação, o efeito da descoberta de um segredo familiar? Tememos as manifestações do inconsciente e fazemos de tudo para ignorá-las. Só levamos uma psicanálise a cabo porque não suportamos conviver com nós mesmos e porque nossos jeitos de tentar driblar as angústias geram sintomas sofridos demais. Fazer análise "para se conhecer melhor", como se fosse turismo, é papo furado de estudante de psicologia.

    Duas mulheres, sustentadas por cabos, flutuam numa coreografia de tirar o fôlego, ora como personagens kafkanianos, ora como amantes/rivais. Somos a profusão de laços e desencontros, sexo e socos, que suspira por um simples abraço?

    Os sintomas são como uma mensagem colocada numa garrafa e jogada ao mar por nós mesmos na esperança de que os encontremos e os leiamos. Tentar ignorá-los equivale a queimar a mensagem antes de lê-la e, pior, não nos livra deles. O desamparo é afeto inerente à experiência humana. Os efeitos sobre o laço social se dão na medida que acreditamos que alguém poderá nos salvar do desamparo. A busca por um salvador serve como uma luva às tiranias de plantão. Como tem apontado com rigor Vladimir Safatle, nada mais alarmante no Brasil de hoje do que a instrumentalização política dos afetos de medo e esperança.

    "Dilúvio", peça arrebatadora de Gerald Thomas em cartaz no Sesc até 17/12, da qual saíram as cenas acima descritas, revela a forma que o artista encontra para lidar com o caos das angústias, que tanto nos movem, quanto nos paralisam. De uma coragem explícita, a encenação aponta para a arte como alternativa ao terror. Aos que lutam contra a barbárie todos os dias, de diferentes formas, nossos profundos aplausos.

    vera iaconelli

    Psicanalista, fala sobre relações entre pais e filhos, as mudanças de costumes e as novas famílias do século 21

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