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    Vera Iaconelli

    Sobrevivendo ao Natal

    26/12/2017 02h00

    Rubens Cavallari - 06.dez.13/Folhapress
    Família observa árvore de Natal no parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo
    Família observa árvore de Natal no parque Ibirapuera, na zona sul de São Paulo

    Na minha infância, o Natal significava a noite na qual vestíamos as melhores roupas, comíamos as melhores comidas, podíamos brincar até literalmente cair de sono e, ainda por cima, recebíamos presentes ansiados. Os preparativos começavam muitos dias antes e a festa ia até o dia seguinte, quando acordávamos cedo para brincar com os presentes novos. É claro que não atentávamos para as brigas familiares, para as bebedeiras de parentes inconvenientes ou para a trabalheira envolvida.

    O Natal era a própria infância, um cercadinho de experiências filtradas por nossa ingenuidade e pela habilidade dos adultos em evitar que nos chocássemos com a realidade antes do tempo.

    Ao longo dos anos, o Natal foi deixando de ser mágico para se tornar um evento, mais ou menos legal dependendo da qualidade de encontro que se dá entre as pessoas.

    Nenhuma roupa, comida ou presente pode disfarçar o mal-estar criado quando o Natal se torna um encontro forçado de pessoas sem afinidade ou, pelo menos, sem respeito pela falta de afinidades. Escolher com quem passar o Natal, atribuição dos adultos, pode causar uma quantidade considerável de angústia.

    Na clínica, é comum os pacientes tornarem-se mais melancólicos nessa época –por vezes, até desesperados. Outros se lamentam que o Natal, se não é um horror, perdeu a graça, tornando-se apenas mais um jantar sem sentido especial. Outros ainda curtem.

    Sem a pretensão de dar conta das inúmeras experiências de Natal de cada um, sigo com algumas observações. O Natal da infância é imbatível porque a infância tende a ser imbatível, até quando ela não foi muito boa. Como dizia Waly Salomão, "a memória é uma ilha de edição": cortamos o ruim e aumentamos o bom, o que torna qualquer comparação fadada ao fracasso. A família da infância é imbatível, porque ela é feita para poupar as crianças dos dissabores da vida adulta.

    Arrisco dizer que o que mais fere as pessoas nessa época é a assombração da família e da infância que o Natal conjuga. Algo como "éramos mais felizes, éramos mais unidos".

    Por outro lado, muitos de nós acumulamos experiências de desamparo e infelicidade familiar desde a infância, experiências que o Natal só vem reavivar. Fazemos um tipo de inventário que confirma que faltou um entorno bacana para nos abrigarmos. Aqui, novamente, o Natal cria um ponto de comparação que nos oprime: as famílias são superfelizes, só a nossa que não.

    O Natal, uma vez que se torna uma mera troca de presentes, acaba também por oprimir aqueles que não têm poder aquisitivo, revelando a maior deturpação do sentido original da festa. Aliás, alguém ainda se lembra o que se comemora no Natal?

    O Natal revela que as famílias se formam, crescem e desaparecem, dando lugar a novas famílias com igual destino, fazendo com que essas datas emblemáticas obedeçam a safras e entressafras. O momento em que morrem os mais velhos, momento de esvaziamento pesaroso, geralmente é seguido por um intervalo e esse, por uma nova leva de crianças que reanimam a festa.

    Enfim, para sobreviver ao Natal, mas também para curti-lo, temos que fazer alguns lutos, sendo o luto a condição psíquica básica para que a vida se renove.

    Ah! Lembrei do que se trata o Natal: é sobre um nascimento.

    vera iaconelli

    Psicanalista, fala sobre relações entre pais e filhos, as mudanças de costumes e as novas famílias do século 21

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