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    Vera Guimarães Martins

    Quando o conteúdo é demais

    21/09/2014 02h00

    A Folha lançou na última segunda (15) o especial multimídia "Crise da Água". Foi a terceira incursão do jornal na série "Tudo Sobre", de reportagens pensadas para o digital.

    Como os dois anteriores, traz conteúdo relevante e uma profusão de informações que chega a impressionar. Também como os anteriores, é aquele tipo de projeto que confere prestígio e prêmios ao jornal, além de satisfação profissional aos autores, mas cujo destino é ser integralmente conhecido por poucos.

    O problema não é de qualidade, mas de extensão. "Crise da Água" traz três grandes reportagens sobre os recursos hídricos em São Paulo ("Gente Demais"), na região Norte ("Água Demais") e no Nordeste ("Água de Menos"). O ponto, para usar o mesmo achado esperto dos títulos, é que tem Texto Demais para um leitorado que dispõe de Estímulos Demais e Tempo de Menos.

    O grande volume de informação faz parte do conceito de reportagem digital, que integra vídeos, galerias de fotos e gráficos interativos.

    A matriz foi "Snow Fall", uma longa narrativa sobre uma avalanche em uma estação de esqui do EUA, publicada em dezembro de 2012, pelo "The New York Times". Foi uma inovação que ganhou fama, um prêmio Pulitzer e muitos seguidores.

    A Folha foi um deles, mas os três projetos já produzidos pelo jornal compõem um perfil diferente. A história da avalanche que matou três pessoas é uma narrativa na primeira acepção da palavra, com acontecimentos encadeados e um relato com veia literária. Pode empolgar como livro de aventura.

    Nenhum dos projetos da Folha cabe no figurino. Eles discutem temas. "Belo Monte" é uma longa reportagem sobre a usina; "50 anos da Ditadura", idem, sobre o golpe militar. "Crise da Água" é um três em um. Não há dúvida sobre o valor jornalístico, mas elas estão mais próximas de um livro didático do que de um relato que segura o leitor. Sua vocação é virar fonte de consulta, não de desfrute. Nada de errado se for essa a intenção. Duvido.

    O excesso de conteúdo é efeito colateral irônico de uma vantagem que o digital tem sobre o impresso: na internet, o espaço não tem fim. Daí para exagerar na dose é um pulo.

    Qualquer uma das reportagens da "Crise da Água" tem fôlego para brilhar sozinha. Poderiam ter saído separadas, como série, ou ao mesmo tempo, mas com capítulos para facilitar o acesso a cada uma de forma independente. No modelo escolhido, o leitor é forçado a ler tudo ou a ir descendo telas e mais telas para encontrar o que procura. É a senha para desistir ou adiar para quando sobrar "um tempinho".

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    UM SISTEMA EM DUAS VERSÕES

    A Secretaria de Segurança Pública do Estado de SP enviou longa carta à ombudsman contestando o conteúdo da notícia que deu origem à manchete de terça (16), "Alckmin maquia programa de combate ao crime na TV".

    A reportagem tratava do descompasso entre o funcionamento real do sistema de segurança Detecta (que auxilia na investigação de crimes) e o que estava sendo divulgado no horário eleitoral do candidato tucano a governador.

    Os repórteres relatavam que muitas das ferramentas descritas na TV não estavam em operação, como a capacidade de identificar cenas suspeitas, e apontavam falhas no principal banco de dados do Detecta, o RDO (que registra os boletins de ocorrência).

    Entre outras contestações, o Estado afirma que o RDO é só um dos vários bancos de dados utilizados e que os repórteres se equivocam nas atribuições do sistema.

    Segundo a carta, o registro de ocorrências em endereço inexistente, um dos problemas apontados na reportagem, é explicado pelo predomínio de furtos (80% dos casos), situação em que a própria vítima não sabe precisar o local.

    A secretaria diz que o Detecta já trouxe ganhos práticos, embora reconheça que está em fase de implantação. Leia a íntegra a seguir.

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    NOTA DO GOVERNO DE SP SOBRE O DETECTA

    A reportagem "Alckmin maquia programa de combate ao crime na TV" (16/9) erra ao se basear em falsas premissas e induz o leitor a conclusões totalmente equivocadas sobre o sistema Detecta, que está em implantação em São Paulo.

    Não existe qualquer fundamento para afirmar que o sistema "não está funcionando". Ao contrário, o Detecta já é utilizado pela Polícia Militar, como poderia ter sido constatado pela Folha se a reportagem tivesse aceitado o convite feito pela Secretaria de Segurança Pública para conhecer o sistema in loco.

    Como esclarecido diversas vezes aos jornalistas da Folha, o Detecta está em fase de implantação, com prazo de final de integração no mês de setembro, cronograma que está em dia. No estágio atual, já está pronto para receber todas as funcionalidades anunciadas.

    O primeiro banco de dados integrado foi o SIOPM (sistema de atendimento e despacho –190, 193, incidentes domésticos, crimes ambientais, incidentes administrativos) no Copom/SP. Está previsto o treinamento a milhares de policiais militares para utilização nos diversos Copom do Estado e em batalhões territoriais. Mais de 300 câmeras da Polícia Militar já estão integradas e estão em processo de integração câmeras de outros órgãos públicos.

    Desde sua implantação, a solução Detecta já gerou mais de 900 mil alertas e ocorrências relacionadas, a partir dos chamados do SIOPM. Isso significa que a Polícia Militar já passou a receber automaticamente, em tempo real, informações adicionais de uma determinada ocorrência, em especial a imagem do local (quando disponível) ou das proximidades, além do registro de outras ocorrências havidas no mesmo endereço ou no entorno, o que facilita o atendimento e o planejamento da atuação policial.

    É preciso lembrar que está em fase final de implantação a integração com as câmeras das estradas – cerca de 900. Elas já foram todas reunidas em um centro de controle, uma medida inédita, e agora estão sendo ligadas ao Detecta.

    Para operar o Detecta, já foram treinados 150 policiais do CICC, do Copom e da operação e inteligência da capital.

    A próxima fase do Detecta, que termina até o final de setembro, vai integrar os dados do RDO (os boletins de ocorrência), de pessoas desaparecidas e do Fotocrim, que é o banco de fotos de criminosos usado pelas polícias paulistas.

    Na etapa seguinte, que será concluída até outubro, serão agregados os leitores de placa de veículo (do DER, por exemplo) e o banco de dados do Detran.

    A terceira etapa será a implantação dos alertas automáticos de atitudes suspeitas flagradas pelas câmeras, o que acontecerá, no máximo, até o final do ano.

    É preciso lembrar que está em fase final de implantação a integração com as câmeras das estradas - cerca de 900. Elas já foram todas reunidas em um centro de controle, uma medida inédita, e agora estão sendo ligadas ao Detecta.

    Os problemas da reportagem ponto a ponto

    A reportagem da Folha tem uma série de problemas, que rebatemos ponto a ponto, abaixo de trechos transcritos do texto publicado.

    "Há pouco efeito prático até hoje, além de não existir nenhum prazo para que todas as ferramentas sejam implantadas."

    Há diversos efeitos práticos, como demonstrado acima. O prazo de implantação existe e teria sido informado à Folha se a pergunta tivesse sido feita à Secretaria da Segurança Pública. A única pergunta sobre prazo nos chegou quase às 19h do dia anterior à publicação da matéria, depois de já termos respondido a quatro levas de questionamentos e depois de nos ter sido informado que a matéria já estava em processo de edição.

    "Vitrine da campanha do candidato à reeleição, a tecnologia batizada de Detecta visa integrar os bancos de dados da polícia com as imagens de câmeras para identificar atitudes suspeitas nas ruas em tempo real."

    O sistema é muito mais do que isso. Como a Folha se negou a conhecer o Detecta in loco, não percebeu que uma de suas grandes vantagens é a chamada "consciência situacional", ou seja, o conjunto completo de informações sobre a ocorrência, com origem em vários bancos de dados. A Folha não apurou. Apenas assistiu à propaganda na TV.

    "E, segundo relatório da Secretaria da Segurança, existem 'graves falhas' no principal banco de dados que alimenta a base do Detecta."

    A afirmação de que o RDO é o "principal banco de dados" do Detecta é dedução (equivocada) da reportagem, que ignora esclarecimentos enviados pela SSP. O sistema utiliza dados de vários bancos de dados, entre eles o RDO. O relatório mencionado foi produzido no final de 2011, e várias medidas foram tomadas para enfrentar os problemas apontados. Ademais, as eventuais divergências não trazem prejuízo nenhum ao trabalho da polícia, conforme notas enviadas à Folha antes da publicação da matéria.

    "Pelos registros do sistema, por exemplo, 24% dos crimes da avenida Paulista e 26% dos da rua 25 de março ocorreram em fevereiro no inexistente número zero dessas vias."

    O exemplo a que a Folha se apega não se presta a demonstrar supostas falhas no sistema. A Folha omitiu que 80% desses crimes são furtos, dois terços dos quais registrados pela própria vítima na delegacia eletrônica. Ou seja, trata-se da situação em que o cidadão, em determinado momento, se deu conta que estava sem o celular ou a carteira, por exemplo, e por isso não teve como precisar o local exato da ocorrência.

    Como informado à Folha, mesmo quando faz o BO presencialmente, se a vítima não sabe o endereço, o próprio sistema faz uma aproximação a partir do que foi informado –assim, se for informado que um crime aconteceu no endereço Nº 26, e este não existir, será registrado o primeiro número da via, que em vários casos começam a partir de 100 (cem). Ou seja, o próprio sistema provoca o que a Folha está considerando "erro".

    A Folha não conseguiu demonstrar qual o prejuízo desses casos mencionados ao planejamento da segurança pública, tampouco ao funcionamento do Detecta.

    "Isso significa que os policiais que seriam acionados pelo Detecta não teriam nesses casos um histórico confiável de onde precisariam atuar."

    A afirmação confunde análise criminal com despacho de viaturas e demonstra total desconhecimento sobre o funcionamento do policiamento. O documento citado pela Folha –aquele que trata de endereços de ocorrências– fala apenas sobre um dos aspectos da análise criminal, que é o quantitativo. Num processo de análise criminal, no entanto, devem ser levados em consideração outros fatores, como as curvas de tendências estatísticas e as informações de caráter qualitativo –como, por exemplo, informações sobre como os criminosos agem em determinada região.

    No trecho do texto citado acima, a Folha erra também ao atribuir ao Detecta o acionamento do policial. Na verdade, o que o Detecta fará é municiá-lo com dados factuais da ocorrência e também, se necessário, com informações de análise criminal, o que incluirá dados quantitativos e também qualitativos.

    "Além disso, a polícia não tem condições de saber de maneira adequada se a imagem registrada por uma câmera está em um ponto com histórico alto de crimes."

    Essa é uma conclusão equivocada da Folha, que considera o endereço exato como a informação absoluta sobre a ocorrência de um determinado crime. Ora, como sabem até os menos informados especialistas em segurança pública, o criminoso não tem raízes, ele se movimenta. Mesmo quando uma quadrilha se especializa numa via, ela não fixa endereço num determinado número.

    "Procurada, a Secretaria da Segurança não informou quando o Detecta estará em pleno funcionamento, como na TV, nem esclareceu dúvidas sobre equipamentos."

    Como já mencionado, a SSP foi procurada várias vezes pela reportagem. Em quatro oportunidades, todas as informações solicitadas foram respondidas. A pergunta a que se refere o trecho, além de não ter sido formulada tal como consta do texto (perguntava-se quando estarão operando as câmeras capazes de identificar atitudes suspeitas), chegou às 19h do dia anterior à publicação.

    "Os tablets utilizam a tecnologia 2G, que é insuficiente para receber a quantidade de informações prevista pelo Detecta."

    Neste caso, a Folha omitiu o seguinte trecho de resposta enviada há cerca de duas semanas: "Sobre a questão dos tablets, equipamentos comprados há mais de quatro anos, é preciso dizer que eles serão integrados ao Detecta, que está em fase de implantação. Os dispositivos são plenamente compatíveis com os objetivos já anunciados para o Detecta. Os equipamentos são utilizados para receber informações referentes à ocorrência específica para a qual uma determinada viatura foi despachada, e não toda a gama de informações amealhadas pelo Detecta, que têm níveis de acesso para cada tipo de usuário. Se necessário, no futuro, poderão ser feitos upgrades tecnológicos".

    Assessoria de Imprensa da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo

    vera guimarães martins

    Escreveu até julho de 2016

    Jornalista, foi ombudsman da Folha. Atualmente é repórter especial. Está no jornal desde 1990.

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