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    Vera Guimarães Martins

    Apuração por telefone sem fio

    02/11/2014 02h00

    Não foram só as campanhas partidárias que surfaram na onda acusatória nas eleições deste ano. A imprensa navegou como nunca na mesma maré. A busca do furo e do protagonismo jornalístico fez os veículos esgarçarem seus critérios, dando enorme publicidade a acusações que só poderão ser comprovadas no futuro. Se é que o serão.

    Com a eclosão da Operação Lava Jato, que apura esquema de lavagem de dinheiro oriundo de corrupção, o jornalismo político foi alimentado por fontes anônimas que relatam declarações dadas por terceiros -no caso, dois delatores pegos com a boca na botija.

    (Vale registrar uma exceção notável: a revelação da pista de pouso pavimentada pelo então governador Aécio Neves em terras de parentes, provada, documentada e noticiada pela Folha em julho.)

    No mais, o resultado foram manchetes construídas com um fiapo de apuração, baseadas em vazamentos seletivos, feitos a conta-gotas. No poder há 12 anos e profundamente entranhado na Petrobras, o PT levou a pior, mas sobrou denúncia para Eduardo Campos (PSB) e Sérgio Guerra (PSDB), ambos mortos e, portanto, impedidos de se defender.

    Não vou dizer que "assim é fácil", porque sei que não é. Não quero desmerecer o esforço dos repórteres da área, que suam para apurar o conteúdo de depoimentos que deveriam ser secretos. O problema é que a natureza sigilosa da apuração dá a algumas fontes um poder enorme, que não deveria ser concedido a ninguém: o de anonimamente vazar o que lhes convém, sem obrigação de apresentar provas. Basta a presunção de que o criminoso esteja falando a verdade para não perder o prêmio da delação. É assustador.

    A mais barulhenta das acusações, vazada às vésperas da votação, foi a declaração do doleiro Alberto Youssef de que Dilma e Lula tinham conhecimento do esquema de corrupção na Petrobras.

    "Veja" estourou a história na capa na noite de quinta (23). No dia seguinte, Aécio usou a denúncia no horário político e no debate da TV Globo, Dilma se defendeu com veemência, e o PT foi à Justiça pedindo direito de resposta -justamente atendido, ainda que o ministro que julgou o caso tivesse atuado como advogado do partido em 2010. Para coroar, veio a pantomima da União da Juventude Socialista vandalizando a entrada da editora Abril.

    Não havia como não dar. A essa altura, já pouco importava se a revelação tinha consistência ou se não passava de uma frase publicada sem muito contexto. As reações eram fatos a serem noticiados.

    A Folha deu manchete para o caso no sábado ("Doleiro acusa Lula e Dilma, que fala em terror eleitoral"), depois de confirmar com duas fontes que o doleiro havia realmente feito a declaração. Atitude tecnicamente correta, mas que não livra o jornal do pecado original, a fragilidade de uma acusação baseada em declaratório sem provas.

    A Secretaria de Redação não vê fragilidade e diz que o jornal publica todas as informações que considera relevantes, independentemente do calendário eleitoral.

    Mas a falta de fontes claramente identificadas ajuda a fomentar novas versões, também difíceis de comprovar. "O Globo", que deu o caso na sexta creditando a apuração à "Veja", divulgou na terça que a frase teria sido acrescentada em novo depoimento, numa espécie de retificação solicitada pela defesa um dia depois. O advogado de Youssef nega e diz que desafia qualquer um a provar a nova convocação.

    A Folha também não encontrou nenhuma fonte que confirmasse a teoria. Mais um lance numa partida de jogadores anônimos.

    Traçado o cenário, ainda assim, a decisão de publicar ou não as denúncias não é fácil. Sugiro o dilema: você, leitor, publicaria, mesmo com as deficiências aqui expostas, ou preferiria abrir mão, enfrentando suspeitas de ter se omitido para beneficiar este ou aquele candidato?

    vera guimarães martins

    Escreveu até julho de 2016

    Jornalista, foi ombudsman da Folha. Atualmente é repórter especial. Está no jornal desde 1990.

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