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    Vera Guimarães Martins

    A grande história do falso estupro

    02/08/2015 02h00

    Na quinta (30), a revista norte-americana "Rolling Stone" comunicou a saída de seu editor-executivo, Will Dana, após 19 anos na empresa. O que poderia ser só uma troca de guarda, natural de tempos em tempos em qualquer publicação, marca o desfecho de um caso que deve entrar para a história do jornalismo por duas situações exemplares: a estrepitosa divulgação de um falso estupro que pôs uma comunidade universitária sob suspeita, seguida por um processo transparente, corajoso e inédito de (re)apuração e expurgação do relatado.

    O inferno da "Rolling Stone" começou em novembro, com a reportagem "Um Estupro no Campus - O ataque brutal e a luta por justiça na Universidade de Virgínia". A história é daquele tipo que céticos profissionais considerariam ideal demais para ser verdade. Tinha drama e "timing" nas medidas certas.

    Pelo menos cinco universidades americanas registravam casos de alunas que diziam ter sido estupradas por colegas dentro dos campi, e as instituições eram acusadas de tratar as denunciantes com descrédito e de tentar abafar o escândalo.

    Nesse cenário, a "Rolling Stone" tirou a sorte grande: achou uma vítima que, em busca de justiça, estava disposta a contar como havia sido estuprada por sete integrantes de uma fraternidade da escola.

    A reportagem foi um sucesso instantâneo, com quase 3 milhões de visitas ao site, mais do que qualquer matéria de celebridade publicada até então. Mas a festa durou pouco. Nos dias seguintes, outros veículos entraram no caso e foram levantando inconsistências variadas. Virou, diz Dana, controvérsia nacional.

    Atordoada, a "Rolling Stone" decidiu pedir que uma fonte externa e acima de qualquer suspeita investigasse os lapsos de apuração, edição e checagem. Steve Coll, diretor da Escola de Jornalismo de Columbia (NY) e detentor de dois prêmios Pulitzer, topou e chamou dois colegas. O trio trabalhou de graça.

    A empreitada levou quatro meses e rendeu um relatório gigantesco. É leitura obrigatória para jornalistas e aspirantes, mas pode ser interessante para qualquer leitor: é uma grande história descrita a partir da autopsia de suas entranhas. A tradução integral do texto está na página digital da ombudsman.

    Steve Coll mostra que a revista descuidou de procedimentos que, vistos de fora, parecem óbvios demais para escapar a repórter e editores experientes. Minha opinião é que falhas como essas ocorrem todos os dias, com consequências menos dramáticas e ruidosas.

    Ditadas pela visão mais cínica, podem ser uma omissão oportunista, para não correr o risco de espantar um personagem já circunstancialmente arredio. Numa visão mais humanista, podem ser alicerçadas na crença do jornalismo como missão que ajuda a melhorar o mundo. (Ambas não são excludentes.)

    Empatia, compaixão, agenda, militância tendem a flexibilizar as regras e –especialmente quando o entrevistado encarna a condição de vítima– borrar os limites do distanciamento necessário entre profissional e personagem. Num quadro delicado como o de um estupro, parece cruel demais fazer perguntas que possam denotar suspeita ou infligir mais sofrimento e humilhação a alguém que está às voltas com o trauma. Não nego que seja, mas é parte indescartável do ofício.

    vera guimarães martins

    Escreveu até julho de 2016

    Jornalista, foi ombudsman da Folha. Atualmente é repórter especial. Está no jornal desde 1990.

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