"Como é acordar colega do Kim Kataguiri?, escreveu um leitor, crente de que estava fazendo uma provocação. A pergunta é retórica, mas diz muito a respeito do raciocínio autorreferente de quem faz. A lógica nela embutida supõe que a mera inclusão do coordenador do Movimento Brasil Livre no quadro de 125 colunistas da Folha é, para ficar no eufemismo, um problema para todos.
A estreia de Kim como colunista provocou quase uma centena de mensagens de reprovação. Parte do leitorado elogiava o pluralismo de opiniões, mas... Seguiam-se argumentos respeitáveis, mas... Ao fim e ao cabo, o resultado era a intolerância ao colunista e suas ideias.
Para esta ombudsman, foi um "revival" de junho de 2014, quando o digital passou a publicar uma coluna semanal de Guilherme Boulos, coordenador do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, cuja vinda também foi abordada neste espaço.
Como Boulos, Kim vai escrever só no site (há 31 colunistas nessa condição). Como a de Boulos, sua vinda foi vivamente criticada –inclusive, ora vejam, por Boulos, que usou sua coluna desta semana para fazer críticas ao novo colega.
Resumindo o teor das gritas de agora e d'antanho: Boulos é um filhinho de papai (médico) que não respeita a propriedade privada nem a lei, já que seu movimento invade propriedade alheia; sua contratação revela o viés esquerdista (ou comunista) do jornal. Já Kim é um "moleque que mal saiu dos cueiros", um coxinha (filho de metalúrgico) arrogante e sem formação, que comprova o pendor direitista da Folha.
Vamos a Kim. Se pouca idade é um problema, este jornal já pecou mais feio. Em 2010, alçou João Montanaro, 14, a chargista das edições de sábado da nobilíssima página A2, a dos editoriais. Kim terá o fôlego e a capacidade de sobrevivência de Montanaro, até hoje no impresso? Impossível saber, mas o jornal está certo ao tentar renovar seus quadros e apostar em jovens promessas. Aos 19, Kim Kataguiri é uma promessa, goste-se ou não de sua cartilha liberal, sua posição pró-impeachment de Dilma Rousseff, seu ego ou suas mensagens abusadas.
Na reportagem que anunciou sua coluna, Kim declarou que, com sua vinda, o jornal faz uma "excelente tentativa de parecer mais idôneo". Ok, ele se tem em alta conta, mas arrogância e pretensão nunca foram impeditivos para que alguém se tornasse colunista. Ainda segundo Kim, "a Folha sabe que terá alguém que vai criticar o jornal constantemente." Mais um, ele quer dizer.
Não é de hoje que este jornal é criticado por esquerda ou direita, colunistas daqui ou alheios, leitores fiéis ou daquele tipo que "toca de ouvido" –sem deixar de mencionar a existência, há 26 anos, de um profissional pago para expor e discutir publicamente questões de conteúdo, o ombudsman. Não me parece que a perspectiva de mais fogo amigo vá abalar estruturas, mas espera-se que Kim ofereça algo além. Até porque, como colunista, é o seu próprio conteúdo que estará sob holofote, e o escrutínio já começou.
Leitores inconformados enviaram cópia de uma piada infame que ele postou na rede em 2014 (Qual a semelhança entre feministas e miojo? Ambos levam três minutos para ficar prontos e são comida de universitário). Em entrevista à TV Folha na terça, ele disse que o post foi feito quando tinha 17 anos e o MBL ainda nem existia, mas que não se arrepende dele –e deu uma explicação desconjuntada sobre feministas que querem o fim dos homens.
Pena que, inteligente como é, Kim tenha perdido a oportunidade de fazer autocrítica. A comparação é uma ofensa a todas as mulheres, e essa cretinice juvenil vai perseguir sua figura como um zumbi de filme B. É, no mínimo, um erro de avaliação para quem diz ter ambições políticas.
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Um fato curioso (ou não): muitos dos que contestam as escolhas de colunistas da Folha, sejam à direita ou à esquerda, gostam de demonizar a "mídia monopolizada", aquela que supostamente só publica o lado que lhe convém, e louvar a internet, pela liberdade e diversidade de vozes que ela abriga.
Jornalista, foi ombudsman da Folha. Atualmente é repórter especial. Está no jornal desde 1990.