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    Vera Guimarães Martins

    Barbeiragem no corte

    27/03/2016 02h00

    O pega-pega da Lava Jato descambou para a histeria na semana passada com a nomeação que daria o foro especial de ministro a Lula e a divulgação de suas conversas com figuras que já gozam de foro privilegiado. As duas cartadas tornaram indissociáveis os imbróglios jurídico e político, incendiaram o clima e deram origem a um debate acalorado sobre legalidade/legitimidade.

    Nesse cenário, nada mais lógico que a decisão de Teori Zavascki, o ministro relator da Lava Jato, despontasse como crucial na chuva de ações que desabou sobre o Supremo, parte delas distribuída a outros ministros. Se Sergio Moro é o pilar da investigação, o endosso de Teori às decisões tomadas na primeira instância tem sido o arrimo que salvaguardou o pilar em momentos-chaves. Não faltaram e não faltam interessados na demolição.

    Teori divulgou sua sentença na noite de terça (22): era surpreendente não só pela decisão em si mas também pela dureza dos termos em que foi pronunciada. Em suma, ele considerou que a quebra do sigilo dos grampos foi ilegítima, emitida por juízo reconhecidamente incompetente para a causa (devido ao privilégio de foro) e que era descabida a invocação do interesse público da divulgação ou a condição de pessoas públicas dos interlocutores atingidos, como havia feito Moro.

    Nada disso saiu no jornal do dia 23. No papel, a Folha limitou-se a relatar a retirada das investigações sobre Lula das mãos de Moro.

    O texto do impresso era cerca de 40% menor que o do site (12 x 18 parágrafos), redução comum para adequar o latifúndio digital ao minifúndio do papel. O problema é que, na hora do ajuste, a editoria "Poder" cortou precisamente os trechos em que o ministro dava respostas ao debate que agita não só o meio jurídico como toda a sociedade, mantendo outros muito mais dispensáveis.

    Antes que os defensores incondicionais de Moro interpretem a crítica à reportagem publicada como um ataque ao juiz, lembro que a natureza desta coluna é discutir o jornalismo de maneira tão técnica quanto possível. Fosse quem fosse o personagem, o teor e a dureza inédita da sentença eram a alma da notícia. Que ela tenha vindo do relator a faz ainda mais relevante.

    O texto original reconhecia essa condição e lhe conferia o devido peso desde a primeira frase ("Em uma de suas decisões mais duras"); outros seis parágrafos davam a argumentação do ministro (http://folha.com/no1753036 ). Numa barbeiragem da Redação, dançaram todos esses trechos e a frase inicial.

    Declara Fábio Zanini, editor de "Poder": "Os cortes para adequar o texto ao espaço disponível não foram tecnicamente bem feitos, pois deveriam ter preservado as críticas ao juiz de Curitiba".

    Escusas pela crueza, mas a conflagração política não permite tanta diplomacia: o corte foi tão sem noção que custa a crer que tenha sido praticado pela editoria de política. Mais do que qualquer outra, "Poder" está no olho do furacão e é a maior destinatária de mensagens dos leitores, em parte opiniões e cobranças pertinentes, em parte acusações delirantes. Um erro primário como esse tem o condão de alimentar os dois grupos, e com razão.

    Em tempo de campos minados, a Redação precisa, mais do que nunca, colocar-se na posição do leitor e adiantar-se às dúvidas que podem surgir até em questões aparentemente prosaicas e pacíficas.

    No último domingo, Gregorio Duvivier enviou sua coluna, mas, após o impresso já rodado, reescreveu o texto e pediu que ele fosse trocado no digital. A "Ilustrada" atendeu ao pedido sem nenhuma preocupação com as dúvidas que naturalmente surgiriam, como se fosse praxe publicar colunas diferentes do mesmo autor no mesmo dia. O aviso de que a mudança havia sido solicitada pelo próprio Duvivier só foi postada no site depois da chegada de mensagens acusatórias de manipulação. Não era óbvio que daria chabu?

    vera guimarães martins

    Escreveu até julho de 2016

    Jornalista, foi ombudsman da Folha. Atualmente é repórter especial. Está no jornal desde 1990.

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