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    Vladimir Safatle

    Boulez e a liberdade

    24/03/2015 02h00

    Dele, o filósofo Michel Foucault disse que era capaz de "ter a força de romper as regras no ato mesmo em que as implementa". Ou seja, pelas suas mãos, a máxima organização e determinação prévia da forma musical era, no final, apenas a astúcia para se produzir uma liberdade completamente nova, pois liberdade em relação à maneira com que as convenções da linguagem musical haviam se depositado em nossa sensibilidade, moldando as possibilidades de nossa percepção. Organizar ao máximo era a maneira de se livrar de todos as camadas de uma ordem antiga que exercia sua maior violência em silêncio, pois era ordem travestida de naturalidade.

    Neste momento em que Pierre Boulez faz 90 anos (26 de março), nada melhor do que lembrar como sua música, muitas vezes chamada de "difícil" e "cerebral" devido ao seu alto grau de elaboração, sempre foi uma das mais originais indagações contemporâneas sobre o conceito de liberdade.

    Boulez não é apenas o maior compositor vivo, responsável por uma obra que influenciou de forma decisiva a história da música do século 20. Uma história impossível de ser contada sem passarmos por algumas de suas obras, como "Le Marteau Sans Maître", "Sonata para Piano Número 3", "Pli Selon Pli" e a bela "Répons". Boulez é também um dos grandes maestros dos últimos 50 anos, com gravações maiores de Béla Bartok, Stravinsky, Mahler, Alban Berg, entre outros. Sua produção teórica sobre música também se conta entre as mais relevantes, embora apenas dois de seus livros tenham tradução em português ("A Música Hoje" e "Apontamentos de Aprendiz").

    Tanto como compositor quanto como teórico, o compositor francês soube manejar como poucos a dialética de uma forma que vai sempre em direção ao que parece inicialmente não se deixar formar. O acaso, a abertura, a recuperação imediata do som acústico pela manipulação eletrônica: todos elementos que faziam das obras de Boulez um impressionante jogo da razão com aquilo que parece inicialmente lhe escapar. Mas um jogo no qual a capacidade de reencontrar a expressão, de constituir motivos musicais, de dar ao tempo uma nova forma de continuidade tinham a possibilidade de dar a última palavra. Nem que, para isto, as obras precisassem estar em estado constante de acabamento, de construção e desconstrução.

    Desta forma, em suas obras, a música aprendeu como o domínio técnico estrito era a condição para a mais ampla liberdade. Talvez por isso a escuta do nosso tempo ainda seja tão avessa à sua música. Que o aniversário de seus 90 anos não passe em branco.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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