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    Vladimir Safatle

    Nuno Ramos e suas buscas

    11/09/2015 02h00

    Yahoo não é apenas o nome de um dos mais conhecidos sites de busca da internet. Antes de aparecer no mundo virtual, Yahoo era o nome de uma raça de humanoides que povoam "As viagens de Gulliver", de Jonathan Swift. Descritos como brutos, simplistas, primitivos e materialistas, eles se contrapunham em tudo a uma raça de cavalos inteligentes responsáveis por fundar uma sociedade racional e pacífica: os Houyhnhnms.

    Os Yahoos ficaram famosos, já os cavalos racionais permaneceram esquecidos. Pois não foi mero acaso o fato de Yahoo nomear atualmente um instrumento de busca profundamente associado a nossas formas contemporâneas de vida, um dispositivo que organiza nossos modos de procura e catalogação. Também não foi um acaso que um de nossos mais importantes artistas plásticos em atividade tenha nomeado sua última exposição de "Houyhnhnms".

    Como quem fala da necessidade de outra forma de procura, da recusa de certa brutalização da percepção que acomete estes momentos históricos que parecem retrair seus horizontes de expectativas. Talvez seja a consciência tácita de estar vivendo um tempo como este que move Nuno Ramos a apelar à figura de uma razão impronunciável, de animais que lembram o que os homens deixaram para trás, em sua nova exposição, na Estação Pinacoteca.

    Poucos artistas plásticos brasileiros têm tanta clareza das articulações entre forma estética e experiência social como Nuno Ramos. Não apenas por sua capacidade em dar visibilidade àquilo que a sociedade brasileira luta com toda suas forças para deixar invisível e sem nome. Capacidade exposta de maneira magistral, entre tantas outras obras, em "111": instalação feita para expor o jogo de invisibilidade que tendia a enterrar os 111 mortos no massacre do Carandiru. Ou ainda na violência exposta de "Aurora" com seus personagens que se sucedem gritando "Alvorada" enquanto recebem um tiro na cabeça.

    Na verdade, a articulação entre forma estética e experiência social em Nuno Ramos é capaz produzir uma impressionante inversão, transformando em potência e dinâmica de movimento o que poderia parecer como o inacabamento da experiência social brasileira.

    "Minha ideia de forma é de uma goma sempre em potência e nunca completamente determinada." É com tal frase que Nuno Ramos define um dos eixos fundamentais da especificidade de sua experiência estética. Seus trabalhos são produzidos no limite entre a potência e o ato, como se quisessem apreender este momento em que a forma não está completamente formada, no qual a potência não passa completamente ao ato. Nada estranho para um artista que não temeu dizer que: "É no estado intermediário, antes da secagem, híbrido ainda de morte e promessa, que a vida guarda o seu segredo".

    Em uma formulação feliz, Júlia Studart chegou a afirmar que Ramos trabalhava "no limite político do incompleto e do inacabado". Pois o que sabe se sustentar em seu inacabamento tem a força política de problematizar o dever ser. Em um país que sempre se viu "inacabado", "incompleto" em seu trajeto em direção ao desenvolvimento, incapaz de se estabilizar em uma determinação, talvez não haja gesto crítico mais forte do que recusar as ilusões da completude, ou seja, livrar-se da imagem de uma completude cuja violência normativa nos impede de explorar o sentido da resistência de nossos trajetos, da insubmissão de nossa materialidade.

    À sua maneira, isto fica claro na série de pinturas que compõem o eixo central de sua última exposição. Quadros marcados por um impressionante composto de centenas de quilos de pintura, material têxtil e metálico que produz a experiência de uma materialidade em combustão que sobrecarrega a tela. Tal composto foi criado por camadas de trabalho que, ao mesmo tempo em que tornava visível traços, estruturas, formas, os arruinava por mais-trabalho. Maneira de sustentar as formas em potência contínua, em hibridação dinâmica de materiais. Maneira de expor um trabalho que cria desconstituindo.

    Talvez seja isto que, ao final, mostrem os Houyhnhnms de Nuno Ramos, a saber, que a sociedade racional é aquela capaz de reconciliar as formas com o princípio de seu movimento. Esta inquietude absoluta do que se move é o que nossa experiência social não saberá jamais perder. Mesmo que o sentido de tal inquietude seja constantemente calado pela visão primária e pobre dos Yahoos.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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