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    Vladimir Safatle

    O imobilismo e sua quebra

    02/10/2015 02h00

    Ao fim e ao cabo, Anna Muylaert produziu, com "Que Horas Ela Volta?", um filme necessário. De fato, o cinema brasileiro recente tem uma dificuldade congênita de abandonar a linha segura do realismo documental e criar histórias com seus arcaísmos de classe.

    Tal silêncio em relação aos nossos arcaísmos talvez seja apenas sintoma dessa capacidade impressionante das classes abastadas brasileiras de não se deixarem representar de uma maneira que quebre suas autoilusões. Nada estranho, já que, como se diz, quem paga a orquestra escolhe a música.

    A esse respeito, lembremos como, ao ser questionado sobre a razão pela qual não existiam dados sobre o Brasil em seu livro "O Capital no Século 21", o economista Thomas Piketty afirmou não ter sido capaz de acessar os dados da elite patrimonial de nossas terras. Alguém deveria ter alertado Piketty que, aqui, a classe dos que desconhecem a crise sabe como esconder sua imagem quando necessário.

    Ela sempre soube como não deixar circular seu modo de vida de forma a mostrar suas próprias misérias morais e indiferença social. Um dos resultados dessa incrível arte de ilusionista de nossa elite é o fato de o cinema nacional recente, com raras e honrosas exceções, desconhecer o que faz o Brasil ser Brasil.

    Ao escolher contar a história de uma empregada e sua relação com seus patrões em uma mansão no Morumbi, parecia, no entanto, que teríamos mais um filme que se deleita em repetir a comicidade reconciliadora própria às relações de classe em telenovelas. O protagonismo de uma atriz marcada por tal universo, como Regina Casé, poderia nos levar a apostar nesse jogo. No entanto, há de se reconhecer que o longa sabe como produzir surpresas e que mesmo a escolha da atriz se demonstrará um grande acerto.

    O eixo central é a representação do imobilismo e de sua quebra. De fato, a vida na mansão do Morumbi é marcada pelo imobilismo de quem sabe que não precisa fazer nada para continuar na posição confortável em que sempre esteve. O pai é um rentista ocioso. Outrora, teve veleidades artísticas, queria ser pintor, mas não teve forças para continuar. Na verdade, nem precisava de fato se colocar tal desafio, já que sua vida sempre esteve e estará assegurada. Hoje, se compraz em acordar às 11h para tomar seus antidepressivos e observar seu próprio imobilismo.

    O filho adolescente tem camisetas de bandas legais, como Joy Division, fuma seus baseados, mas também não se coloca maiores questões. Ele poderá ser o filho adolescente pelo tempo que quiser, independente do que acontecer. Adolescente eterno, como seu próprio pai. Tudo está assegurado pelos deuses da paralisia.

    Até que chega Jéssica, a filha da empregada, decidida a prestar vestibular para a USP. Ela representa essa parcela da população brasileira que começou sua ascensão social nos últimos dez anos, a população em movimento.

    Só que, contrariamente à mãe, que se orgulha em mostrar para a filha sua TV de tela plana e seus eletrodomésticos que um dia serão usados, Jéssica desdenha uma situação na qual a integração pela ampliação da capacidade de consumo parece ser o destino final.

    A filha teve um professor de história que lhe ajudou a pensar de forma crítica, descobriu o modernismo, quer conhecer as obras de Niemeyer. De fato, ela não quer ficar em seu "lugar natural", o que coloca sua mãe em pânico. Ela entrará na piscina, agirá como uma igual no interior da casa, provocando um movimento cujas consequências serão motor do filme.

    Com essa imagem de um processo em curso produzido pela possibilidade de redefinição dos regimes de circulação do saber e pelo sentimento de autorrespeito que tal redefinição produz, Muylaert fez mais do que oferecer um retrato do presente, pois alguns poderiam lembrar que essa imagem está distante do que vemos atualmente de forma hegemônica no país.

    Ela indica um caminho que agora pode ocorrer, sugerindo a imagem de um possível que até há pouco seria impossível. Sempre foi próprio dos bons filmes mostrar não necessariamente o que existe, mas a latência da existência, aquilo que se tornou possível –mas que muitos, pelas razões de sempre, gostariam de continuar silenciosamente a não acreditar. Os bons filmes nos fazem ver não a atualidade, mas a possibilidade da atualidade.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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