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    Vladimir Safatle

    O povo na rua como terrorismo

    30/10/2015 02h00

    Depois de grandes manifestações contra o governo, a crise econômica e a classe política que sacudiram a Espanha nos últimos anos, os poderes instituídos resolveram enfim responder. Não, eles nada fizeram para tentar dar alguma realidade institucional a demandas de democracia direta e de autonomia do poder em relação aos interesses do sistema financeiro. A toque de caixa, o governo espanhol aprovou leis que criminalizavam, entre outras coisas, "perturbações graves" junto ao Congresso e "uso indevido" de imagens de policiais. Por exemplo, graças a essa lei, uma espanhola que fotografou um carro da polícia estacionado em área proibida foi multada. Esta é a forma que, atualmente, os "Estados democráticos" respondem quando se sentem ameaçados pela revolta popular: eles procuram todos os meios para transformar a revolta política em crime.

    Como nenhuma ideia ruim vem à existência sem alguém que tenha a crença de devermos aplicá-la por nossas bandas, o Senado brasileiro acaba de aprovar uma lei que, no fundo, visa simplesmente impor medo aos cidadãos que ousem ir novamente às ruas para manifestar contra a casta política que os governa e seus interesses. Ela vem com o nome de "lei antiterrorista", mesmo que, no Brasil, até segunda ordem, ninguém tenha ouvido falar da existência de "grupos terroristas", a não ser pela boca de políticos do PSDB, que, na era de FHC, o sábio, gostavam de chamar o MST de "terrorista", ou de revistas humorísticas travestidas de semanários de notícia que chamavam manifestantes com a mesma alcunha.

    Duas interpretações então se impõem. Ou a lei é um caso absolutamente único de legislação constituída antes do fato que a legitime ou ela tem um fato, mas ele não é aquele que alguns procuram nos fazer acreditar. Vejamos, por exemplo, como a lei tipifica "terrorismo": "Provocar ou infundir medo ou terror generalizado mediante ofensa ou tentativa de ofensa à vida, à integridade, à saúde ou à privação da liberdade da pessoa". Provocar terror generalizado mediante tentativa de ofensa à saúde: como todos podem perceber, trata-se de uma definição quase cômica que nem com a maior boa vontade permitiria individualizar com clareza aquelas condutas que deveriam ser tipificadas como terrorismo. Pela definição, a clássica emissão radiofônica de Orson Welles sobre um ataque de marcianos cujo realismo era tamanho que provocou pânico na população seria tipificada de terrorismo pelos parlamentares brasileiros. No entanto, por alguma razão singular, nenhum parlamentar lembrou de tipificar como terrorismo o ato de provocar terror generalizado por meio da corrupção ao bem público.

    De toda forma, como nossa polícia é eivada de admiradores confessos da ditadura de 64 ou de especialistas em inteligência militar capazes de transformar embalagem de Nescau e de vinagre em artefato bélico, dá para imaginar como será interpretado o ato de "provocar terror generalizado". Afinal, sempre se é o terrorista de alguém. Neste ponto, o sempre alerta senador Aloysio Nunes conseguiu o feito inacreditável de piorar uma lei já medonha ao retirar o parágrafo que afirmava que a nova legislação não se aplica a: "conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou categoria profissional". É que a política brasileira já dispensou a fase dos disfarces.

    É claro que, ao menos neste ponto, o Brasil não inova. Faz parte da 'novilíngua' atual usar uma noção completamente vaga de "terrorismo" para justificar um Estado de exceção permanente no interior do qual podemos flexibilizar leis que garantem liberdade individual, fichar manifestantes de toda ordem e exigir que as pessoas não tirem fotos de carros de polícia estacionados em lugar proibido. Pois há algo que as democracias oligárquicas atuais têm mais medo do que de terroristas reais: manifestantes nas ruas.

    No entanto, há um ponto no qual a lei brasileira abre novos caminhos para o mundo, a saber, na tipificação de "terrorismo contra coisas". Sim, é possível ser terrorista contra coisas, desde que tais coisas sejam "meio de transporte coletivo" de propriedade de empresas cujos donos costumam ter contas na Suíça, "instituições do sistema financeiro nacional e sua rede de atendimento", entre tantos outros. Uma lei contra depredação de patrimônio não basta. Quebrar vidraça de banco só podia mesmo ser terrorismo.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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