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    Vladimir Safatle

    Almoço grátis

    29/01/2016 02h00

    "Mas por que não um almoço grátis? Tem tanta coisa que poderia vir à frente. Podia ter almoço grátis, jantar grátis, ida para a Disney grátis". Como os leitores sabem, esta foi a maneira respeitosa com que o prefeito de São Paulo tratou a proposta de tarifa zero na semana passada.

    No entanto, ironia maior do que a que estaria pretensamente presente na afirmação é o fato da proposta, comparada pelo prefeito como uma verdadeira viagem grátis para encontrar o clube do Mickey, ter sido, na verdade, desenvolvida por membros do governo da própria Prefeitura de São Paulo à ocasião que seu próprio partido governava o município sob a administração Erundina.

    Foi por razões políticas, e não econômicas, que a proposta, já aplicada em várias cidades do mundo com níveis diferenciados de sucesso, foi abandonada à época. No que se mede claramente a distância entre os dois momentos em que seu partido ocupou a condução do município de São Paulo. Em 20 anos, foram mudanças maiores que as produzidas pela passagem de Alice pelos espelhos.

    Mas a afirmação diz muito bem o que quer dizer. "Não existe almoço grátis" era, não por acaso, uma das frases preferidas do economista neoliberal Milton Friedman para defender suas ideias a respeito do fim do estado do bem-estar social e das políticas compensatórias.

    Bem, mas, em um mundo no qual "partidos de esquerda" defendem a aplicação extensiva do estado de exceção e a perda de nacionalidade para cidadãos binacionais pretensamente envolvidos com ameaças terrorista, que surpresa deveria haver em um prefeito, vindo de um antigo partido de esquerda, fazer troça como um economista neoliberal?

    No entanto, mais do que uma frase infeliz a preencher o farto bestiário político nacional, as afirmações em questão evidenciam muito bem as estratégias retóricas utilizadas pela classe política vinda de juventudes douradas em movimentos de esquerda para não ouvir aquilo que ela não sabe mais como responder ou que não quer mais responder por ter se adaptado muito bem às novas roupas do rei.

    Normalmente, há neste caso três estratégias padrão de desqualificação política. A primeira consiste em apontar para pretensos interesses inconfessáveis a motivar aquele que te critica. Se antigos aliados criticam sua política econômica miserável, é por eles serem agora movidos pelo ressentimento de quem gostaria de ter sido agraciado por alguma benesse governamental. Se outro denuncia sua conivência com práticas políticas degradadas, é porque ele está recebendo dinheiro da oposição ou porque está motivado por algum interesse inconfessável de poder.

    A segunda estratégia consiste em denunciar a profunda e primária ingenuidade política de seus críticos. Quantas vezes fomos obrigados a ouvir que os que procuravam desenvolver uma crítica, pela esquerda, ao partido governista estavam, na verdade, a fazer "o jogo da direita"? Sim, esta colocação é a melhor de todas.

    Pode-se entregar a educação do governo a Gabriel Chalita, entregar a condução das políticas de assistência social à filha de Michel Temer, mas quem faz o "jogo da direita" será sempre você que deve ser alguém de grande ingenuidade, incapaz de perceber a astúcia da razão agindo por meio dos interesses mesquinhos do curso aparente do mundo.

    Por fim, a última estratégia de desqualificação retórica consiste em jogar seu crítico na vala da irracionalidade. Duas são as figuras mais populares aqui.

    A primeira é a reduzir seu crítico à condição de alguém que age motivado apenas por crenças, e não por alguma forma de "argumentação racional". Se alguém está a te criticar, ele só pode ser um fanático.

    A outra figura é reduzi-lo à condição de minoridade, ao infantilismo. Ou seja, alguém que acha que demanda política é como pedir viagem grátis para a Disney, alguém que não sabe fazer conta, por isto brinca de tacar fogo em suas grandes conquistas.

    Não foi por acaso que vários setores do governismo usaram essas mesmas estratégias para desqualificar os movimentos de junho de 2013 e seus atores.

    Demandas irracionais, ingênuas, que faziam o jogo da direita ou eram motivadas por interesses inconfessáveis: essa panaceia foi mobilizada várias vezes, de acordo com a conveniência, para dizer que, de certa forma, junho de 2013 não existiu, que fora um hiato infeliz da história brasileira ou uma armação da CIA para nos tirar o pré-sal.

    Afinal, como conviver com o que você não controla? Que um dos seus atores fundamentais, o MPL e sua pauta decisiva sobre a irracionalidade do sistema público de transporte, seja tratado como criança, bem, isso diz muito mais sobre o enunciador do que sobre o objeto do enunciado.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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