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    Vladimir Safatle

    Alguns parecem acreditar que filhos devem ser tratados como propriedade

    19/08/2016 02h02

    Dentre as pretensas evidências que parecem influenciar os debates nacionais a respeito da relação entre indivíduos e sociedade civil uma que merece destaque é: "Meus filhos, minhas regras".

    A princípio, essa frase tão repetida nos últimos meses parece irrefutável. Contra a sanha do Estado em impor valores e homogeneizar seus cidadãos, haveria de se afirmar a liberdade que as famílias teriam de defender a multiplicidade de suas crenças e a singularidade de seus modos de vida.

    Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress
    Ilustração Vladimir Safatle de 22.jul.2016

    Nesse sentido, "Meus filhos, minhas regras" parece querer realizar a famosa afirmação da finada Margaret Thatcher: "Não existe essa coisa de sociedade, existem apenas indivíduos e famílias". Mas temos o direito de colocar uma pergunta relativamente impertinente, a saber: você tem realmente certeza de que os filhos são "seus"?

    Não que se trate aqui de colocar questões a respeito de relações de filiação, se os filhos são seus ou de outras pessoas, mas talvez seja o caso de perguntar sobre o que são exatamente relações de filiação.

    Uma relação de filiação equivale a uma relação de propriedade? Pois vejam como quem fala "são MEUS filhos" nesse contexto parece querer dizer algo como: "eles são minha propriedade, tenho sobre eles direitos quase equivalentes aos direitos que tenho diante dos bens dos quais sou proprietário".

    Assim, eu poderia impor a eles regras que bem entender (a não ser em casos humilhantes e ligados a alguma violência previstos na lei).

    De fato, no direito romano, os filhos equivaliam a propriedades do pai. Este por sua vez, na condição de "pater familias", era o único com capacidade legal de firmar contratos e ter propriedade. Dessa forma, os filhos e filhas dependiam do destino do pai para enfim alcançar a condição de pessoa no sentido jurídico pleno. Normalmente, enquanto o pai não morria, os filhos estavam submetidos até ao direito de vida e morte fornecido a ele.

    Claro que não estamos mais na Roma antiga, mas é bastante sintomático que alguns continuem a pensar relações intersubjetivas como se estivéssemos a falar de relações de proprietários. Talvez eles ainda não tenham alcançado a distinção entre coisas e pessoas. Pois, de certa forma, os filhos não são "meus". Na verdade, os filhos são de ninguém. Os filhos são aquilo que eles se tornarão e não devem estar sob o absolutismo de suas famílias, com suas neuroses, limitações e preconceitos.

    É para garantir a liberdade dos filhos em relação às suas famílias que devemos lembrar, contrariamente ao que falava a finada Thatcher, que a sociedade existe. Pois se as "regras" que você impõe ao seu filho forem ruins, se seus valores forem ruins, toda a sociedade sofrerá. É ela que, ao fim e ao cabo, pagará, e muitas vezes caro, por tais escolhas.

    Mas você poderá se perguntar, com toda razão: e quem afinal decidirá se as regras são boas ou ruins? Quem será alçado à condição de legislador? De fato, uma sociedade democrática evitará ao máximo definir sobre conteúdos normativos, mas ela definirá um princípio geral que é a própria essência do que entendemos por república.

    Uma sociedade republicana e democrática é, acima de tudo, aquela que compreende a igualdade como seu valor fundamental e que lutará com todas as suas forças contra todo princípio que quebre a relação igualitária entre seus membros, seja esse princípio econômico, social ou cultural.

    É o respeito à igualdade que definirá os valores que a sociedade permite circular em seu seio. Pois ela não aceitará nenhum valor que perpetue relações desiguais entre seus membros, estejam tais valores enunciados sob a forma de proposições sobre raça, gênero, classe, nacionalidade ou religião.

    A realização de tal princípio exige uma tensão sempre renovada, mas é ele que guia (ou que deveria guiar) nossos embates.

    Notem que, nesse contexto, o contrário da igualdade nunca foi nem nunca poderia ser a diferença. O contrário da igualdade é a desigualdade. A diferença só é possível lá onde a igualdade impera, pois ela garante que todas as diferenças serão acolhidas em um campo comum.

    Ou seja, a igualdade permite a consolidação de uma indiferença acolhedora de todas as diferenças. Agora, a boa questão é: esses que clamam "meus filhos, minhas regras" querem, de fato, isso?

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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