Há uma passagem na "Dialética do Esclarecimento" na qual os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer afirmam que, muitas vezes, não há nada mais estúpido do que ser inteligente.
Nessa passagem, eles descrevem como seus amigos intelectuais tinham análises detalhadas e bastante astutas para provar de forma cabal como a ascensão do nazismo nunca seria possível. Nenhuma delas serviu para impedir o que era, no final das contas, claro como o sol ao meio-dia.
Bem, a eleição de Donald Trump é, mais uma vez, a prova de como muitas vezes não há nada mais estúpido do que ser inteligente.
Até o último dia da eleição, as "chances" de vitória de Hillary Clinton eram creditadas em até 90%. A inconsistência de Trump, seu caráter errático, suas falas absurdas e caricatas eram salientados a todo momento para confirmar aquilo que as pesquisas pareciam indicar: que ele nunca seria o próximo presidente dos EUA.
No entanto, Trump viu algo que ninguém queria ver, a saber, que a democracia liberal acabou, que a política não passa mais pela conquista do centro e pela boa gestão da institucionalidade atual. Ela passa pelo deslocamento em direção aos extremos e pelo decisionismo soberano.
Marcelo Cipis/Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Tudo estava claro para quem quisesse ver. O "brexit" e a ascensão da xenofobia na Europa foram expressões de uma profunda descrença popular com os gestores da democracia liberal. Lembremos como os últimos anos demonstraram como as "recuperações" econômicas aplicadas através de planos de "austeridade" significaram aumento brutal da precariedade, da insegurança social e da desigualdade.
Esses planos de recuperação foram geridos de forma praticamente semelhante, tanto por liberais como pela "esquerda" (ou por algo que gostaria de, em certos momentos, se fazer passar por ela). A ira popular contra tal classe de gestores sociais era evidente e levaria a um forte sentimento anti-institucional.
Foi para vampirizar tal sentimento que entrou em cena Donald Trump. Denunciando a "elite política" e a "elite midiática" por esquecimento das "pessoas comuns", ele, o representante maior da elite financista e rentista que mais se beneficiou das políticas econômicas dos últimos anos, fez o inacreditável papel do "homem simples" indignado com a impotência dos burocratas e com a inércia dos partidos.
Sua imagem de bem-sucedido, junto à sua capacidade de mudar de opinião, de se contradizer a todo momento, podia muito bem aparecer como a prova de que estávamos diante de alguém que não respeitaria limites para "fazer o que deve ser feito". Foi o que aconteceu.
Fenômenos como Trump não são passageiros. Eles serão a regra daqui para frente. Clinton, com seu militarismo extremo e sua aliança orgânica com os interesses de Wall Street, era apenas uma direita mais tradicional que terá cada vez menos lugar. Já fenômenos como Trump se aproveitam da inexistência de esquerda no cenário político-partidário mundial e capitalizam todo o sentimento anti-institucional, dando à insegurança social o lastro do medo paranoico contra inimigos externos ou da raiva protofascista contra minorias internas. A história já demonstrou quão explosiva pode ser tal combinação.
No entanto, essa eleição mostrou também a limitação política de certas escolhas feitas ultimamente. Por coincidência, no dia da eleição norte-americana, eu estava na Universidade da Carolina do Norte, onde os estudantes fizeram várias pichações contra Trump. Na maior delas podia-se ler: "Trump: sexista, machista, racista, islamofóbico, homofóbico".
Tudo isso é verdade, mas era sintomático não haver nada sobre seu desejo em acabar com o sistema de saúde gratuito para os mais pobres ou sobre sua política econômica que implicará em concentração de renda e em aumento da precarização. De fato, a tentativa de desconstruir Trump passou, de forma majoritária, por tais pautas ligadas a políticas de reconhecimento.
Nada mais previsível, já que a luta por reconhecimento funciona atualmente como uma certa compensação à inexistência de um discurso econômico de esquerda com clara força de transformação das relações econômicas e com capacidade de implicar as classes empobrecidas.
Conseguimos transformar tais pautas, profundamente justas em si, na única modificação concreta que a esquerda consegue atualmente oferecer, já que estamos todos comprometidos com a gestão do mesmo modelo econômico, divergindo apenas sobra a intensidade da aplicação das mesmas políticas. Mas se o modelo econômico é o mesmo, se o problema é só de intensidade, então melhor entregar as chaves do cofre para alguém que sabe como as entranhas do capital realmente operam. Ao que parece, foi assim que metade mais um da população norte-americana pensou.
É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.