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    Vladimir Safatle

    Movimentos aberrantes

    05/05/2017 02h20

    Marcelo Cipis/Folhapress

    "Os livros que são exemplares para nós foram, inicialmente, não livros, narrativas erráticas, monstros sem coluna vertebral". É com afirmações dessa natureza que se inicia "O Fio Perdido: Ensaios sobre a Ficção Moderna", de Jacques Rancière (Martins Fontes, R$ 39, 152 págs). Lançado em 2013, o livro recebe agora edição brasileira. Seu autor, um dos principais filósofos da atualidade, segue há anos de forma extensiva um projeto singular, a saber, expor as relações entre emancipação social e modificações nas estruturas da sensibilidade, ou ainda, modificações naquilo que o filósofo chama de "partilha do sensível".

    Tal projeto fez do trabalho de Rancière nas últimas décadas uma reflexão sistemática sobre a força de transformação social da estética e das artes, sobre sua maneira de, ao reconstituir os campos de nossa sensibilidade, permitir a emergência de "uma nova forma individual e coletiva de vida", como ele mesmo dissera em outro texto. Pois essas decisões que uma obra de arte produz a respeito dos modos de partilha do sensível, decisões essas que falam dos modos de recortar o tempo e o espaço, de instaurar o visível e o invisível, o perceptível e o imperceptível, não poderiam ser indiferentes à maneira com que a vida social, em suas potencialidades de ação e transformação, emerge para nós.

    Aristóteles costumava dizer que o que separa a ficção da vida ordinária é a existência de um começo, de um meio e de um fim. Maneira de afirmar que a ficção é o que dá ordem à vida, fornece-lhe uma racionalidade na medida em que define formas de ligação, de sucessão, de coexistência, de hierarquia entre acontecimentos.

    Por mais paradoxal que possa parecer, o que chamamos de "ficção" é o que nos fornece as formas do possível e do atual, do contingente e do necessário, do real e do virtual. Pois a ficção nos faz narrar, definindo as estruturas formais para a produção do sentido.

    Isso a ponto de Rancière se ver obrigado a lembrar: "Para se constituir como saberes científicos, a história e a ciência social, tiveram de pegar emprestado da poesia o princípio que declara a construção de um encadeamento causal verossímil mais racional que a descrição dos fatos 'como eles acontecem'".

    Rancière parte dessa compreensão para se perguntar sobre a experiência imanente, principalmente, a esses romances instauradores da modernidade estética, como "Madame Bovary" e "A Educação Sentimental", de Flaubert, "Lord Jim" e "O Coração das Trevas, de Conrad, ou ainda "Mrs. Dalloway" e "Ao Farol", de Virginia Woolf.

    São esses nossos "livros exemplares" que apresentam, ao contrário, uma narrativa errática, sem coluna vertebral. Há algo neles que parece anunciar a emergência de um mundo de objetos não mais submetidos a uma ordem causal, de sujeitos cujas ações parecem aberta às contingências e que, por isso, expõem a falência contínua da ação estratégica, de narrativas nas quais tudo parece igualmente importante ou igualmente insignificante por desconhecer a noção mesma de hierarquia.

    Esse mundo, dirá Rancière, é o mundo igualitário da democracia, de uma democracia romanesca que irá, a partir de então, pressionar nossos modos de existência em direção a transformações. Um mundo no qual qualquer um poderia ser atravessado por um "turbilhão de acontecimentos sensíveis impessoais, de uma 'vida da alma' ainda desconhecida". Ele instauraria um espaço de movimento aleatório no qual nem coisas nem sujeitos estariam submetidos ao quadro das funções, dos lugares, dos meios e dos fins. Espaço no qual mesmo coisas e sujeitos perderiam muito de sua distinção, não porque coisificamos sujeitos, mas porque podemos agora ouvir a capacidade de agir das coisas, sua "subjetividade".

    Dessa forma, Rancière mostra como a literatura moderna nos ensinou o verdadeiro sentido da igualdade. Pelas mãos de Flaubert e Conrad, a igualdade não se realiza pela construção de espaços homogêneos, mas através da instauração de campos de emergência de acontecimentos sensíveis que podem agir em qualquer um, que podem implicar qualquer um, levando-os a movimentos e gestos impredicados, a transformações de lugares.

    Assim, o maior feito da literatura terá sido nos ensinar uma igualdade que é a condição da liberdade, que é o verdadeiro nome da liberdade; dessa liberdade que nos faz mover através de nossa atração pelo que é errático, pelo aberrante.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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