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    Vladimir Safatle

    Reflexão clínica é essencial para entender mutações dos laços sociais

    08/09/2017 02h00

    Marcelo Cipis/Folhapress
    Valdimir Safatle de 8.set.2017

    Christian Dunker é um dos principais nomes brasileiros a frente de uma tentativa de reinvenção da psicanálise em sua força crítica. Até "Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica", seus livros versavam principalmente sobre a especificidade da clínica, seus conceitos fundamentais em orientação lacaniana e as ressonâncias filosóficas que ela mobiliza.

    No entanto, a partir de "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma", tais preocupações se desdobraram, de forma mais explícita, em uma articulação original entre análise da vida social contemporânea, de suas formas de sociabilidade e organização, e modificações no que poderíamos chamar de "gramática do sofrimento".

    De fato, qualquer análise a respeito da gênese e do desenvolvimento das categorias clínicas aplicadas ao sofrimento psíquico depara-se com a mutação impressionante das formas de descrever as doenças.

    Em menos de um século, o número de categorias clínicas foi simplesmente multiplicado por dez. Mutação categorial que não encontra par em nenhum outro setor das ciências humanas ou biológicas. Descrições amplamente usadas, como neuroses, paranoia, perversão, histeria, acabaram por simplesmente desaparecer, como se dissessem respeito a personagens de peças antigas de teatro.

    Mas por trás de tais mudanças, há de se perceber como a gramática do sofrimento, nossa forma de falar de nós mesmo através daquilo que nos faz sofrer, reconfigurou-se. Pois lembremos, com Dunker, que todo sofrimento é composto de uma narrativa (ele se estrutura em uma história), de uma demanda de reconhecimento (ele traz a luz a existência que algo que não consegue encontrar lugar) e de uma estrutura transitiva (ele envolve eu e o outro, mesmo quando se sofre sozinho, há outros envolvidos).

    Nesse sentido, é sempre possível perguntar o que fez tal gramática mudar, o que redimensionou sua narrativa e a estrutura de suas demandas de reconhecimento. Pois uma sociedade não é apenas um sistema de regras, normas e leis, ela é uma forma de sofrer e de inscrever tal sofrimento em patologias.

    Não há sociedade que não se constitua como um sistema de gestão do sofrimento. Gestão através da catalogação, da diferenciação. Modificações nas formas de gestão social implicam modificações nas formas que indivíduos sofrem. É deste processo que trata o último livro de Christian Dunker: "A Reinvenção da Intimidade: Políticas do Sofrimento Cotidiano" (Ubu, 320 páginas).

    Diferentemente dos demais, este livro privilegia uma abordagem de pequenos textos que visam compor o quadro contemporâneo das formas de sofrer. Em nenhum outro livro de Dunker, fica tão claro a contribuição decisiva de mais de vinte anos de trabalho analítico e de escuta clínica do sofrimento.

    Nele, é questão das mutações da solidão, da intimidade, dos afetos, das novas configurações do laço familiar, das especificidades da sociedade brasileira e, principalmente, das formas de constituir vínculos afetivos, com seus impasses e possibilidades.

    Pois trata-se de lembrar como a reflexão clínica é indissociável da compreensão das mutações dos laços sociais em suas múltiplas dimensões.

    Neste ponto, "A Reinvenção da Intimidade" lembra como esse sofrimento cotidiano presente nas formas múltiplas de amor não poderia ser dissociado de uma política, ou seja, de uma pergunta a respeito da natureza das relações sociais e de suas mutações.

    No interior das sociedades neoliberais, sociedades nas quais economia e moral se confundem constantemente, ou seja, sociedades nas quais políticas econômicas são apresentadas através de valores morais ("austeridade", "controle", "contenção", "responsabilidade"), não seria possível que os sofrimentos nas dimensões afetivas deixassem de ressoar modos de racionalização que dizem respeito ao horizonte ideal da vida social em suas macroestruturas.

    Reinvenção da Intimidade
    Christian Dunker
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    Neste quadro de análise, nasce no entanto a certeza de como sujeitos servem-se de suas experiências de sofrimento para constituir caminhos improváveis e laços singulares.

    Como dizia Deleuze, há situações nas quais a doença é melhor do que a saúde que nos propõem. Pois em sociedades como a nossa, muitas vezes a doença é aquilo que os sujeitos tem de mais real, ela uma forma desesperada de lembra-los que um produção singular é necessária e possível.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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