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    Vladimir Safatle

    O preconceito é um exercício da liberdade?

    13/10/2017 02h15

    Editoria de Arte/Folhapress

    Depois da Segunda Guerra, os EUA foram palco de lutas importantes contra discriminação da população negra, em especial nos Estados do Sul. No interior de tais embates, um caso emblemático ocorreu em uma escola na cidade de Little Rock, em Arkansas.

    O governo federal resolveu intervir na discriminação racial que ocorria nas escolas, com instituições de fato para brancos e negros, utilizando a força federal para garantir que alunos negros pudessem ser matriculados e frequentar aulas em escolas ditas de brancos.

    Nesse contexto, uma foto emblemática aparece na imprensa. Vemos Elisabeth Eckford, então uma jovem negra, entrando impassível na escola pública de ensino médio com uma turba branca atrás si vociferando ódio e protegida por tropas federais. Ela fora uma das nove jovens negras escolhidas para integrar a escola. No entanto, ao chegar no primeiro dia de aula, Eckford viu-se sozinha e escoltada sozinha ela caminhou.

    Na ocasião, a filósofa liberal Hanna Arendt escreveu um polêmico artigo a respeito. Mesmo dizendo-se solidária da causa negra, ela criticava a ação governamental, que à sua vista deveria se reduzir a mudar o ordenamento legal e jurídico que suportava a segregação (como as leis até então vigentes em alguns Estados americanos que impediam o casamento inter-racial) e não intervir diretamente nos costumes sociais nos quais a segregação seja alicerçava.

    Utilizando uma distinção entre espaço público de cidadania no interior do corpo político e relações sociais de cunho individual, ou seja, marcados por decisões individuais sobre com quem quero me relacionar, como quero ter minha vida em grupo, Arendt diz que a discriminação é legítima, quando limitada à esfera social, mas destrutiva quando entra na esfera política onde todos devem ser iguais.

    Isso a leva a afirmar, por exemplo, que nada deveria obrigar associações recreativas ou espaços privados de recreação que só aceitam brancos, judeus ou homens a obrigar seus membros a estarem em relação com quem não queiram. Pois nada poderia legislar na esfera de minhas escolhas pessoais. Como não se trata de serviços públicos, mas de espaços privados, a discriminação é legítima.

    O argumento de Arendt encontra seu caso mais complexo na obrigação das escolas de se tornarem racialmente mistas. Ao mesmo tempo que o Estado teria o direito de garantir conteúdos que visem a formação de seus cidadãos e profissionais, ele não poderia violar o direito social à associação livre e o direito privado dos pais sobre seus filhos.

    Se tais associações e pais querem educar seus filhos em um ambiente etnicamente homogêneo, o Estado faria por bem não obrigar legalmente uma mudança. Ainda mais levando em conta que a escola de Elisabeth Eckford era estadual e o Estado de Arkansas estava disposto a garantir tal prática. Daí a conclusão de Arendt, para quem a ação do governo federal teria sido "controversa" e, no limite, indesejável.

    Lembrar dos argumentos de Arendt atualmente é interessante para insistir no tipo de distorção que o conceito de liberdade pode adquirir nas mãos de um liberal.

    Tal distorção parece estar na base de várias controvérsias recentes a respeito do exercício social da liberdade. Ela nos leva a confundir o exercício da liberdade com o "direito" à afirmação social e realização de um comportamento patológico, a saber, o preconceito.

    Dizer que a discriminação é legítima na esfera social, compreender o exercício do preconceito como um "direito", e não como uma patologia social a ser combatida, é o resultado da tese equivocada de que a liberdade baseia-se na possibilidade de afirmação individual de interesses e escolhas. Baseado nisso, poderia dizer que, se escolhi ter uma vida sem negros por perto, quem poderia me obrigar ao contrário?

    No entanto, a liberdade não é um atributo individual, ela é uma realização social própria a sociedades marcadas pela igualdade e pela indiferença social às diferenças antropológicas. Não há indivíduos livres em uma sociedade não-livre.

    Nesse sentido, é sim necessário intervir, em todos os níveis, sobre práticas sociais que minam a adesão a princípios igualitários, sob pena de ver os preconceitos recrudescerem e contagiarem campos cada vez mais alargados da vida social. Em uma sociedade que luta pela liberdade, não pode haver algo como o "direito" de ser preconceituoso na esfera privada ou no campo imediato das relações sociais. Pois o que destrói a liberdade não pode ser um direito exercido em nome da liberdade.

    vladimir safatle

    É professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de São Paulo). Escreve às sextas.

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