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    Walter Ceneviva

    Arrependimento do papa é possível

    16/02/2013 03h00

    A hipocrisia de muitos e a geração de uma imagem deturpada da igreja foram destacadas pelo papa Bento 16, ao falar aos fiéis, na missa de quarta-feira, em Roma. Está na síntese de Clovis Rossi publicada nesta Folha anteontem.

    Lembrei-me da anotação quando um leitor, parando-me na rua, perguntou, de chofre: "O Bento pode arrepiar?". A pergunta, uma vez traduzida, é cabível.

    Isso porque o papa anunciou a decisão de renunciar a seu mandato. Está em carta por ele escrita a afirmação de que, por circunstâncias próprias de sua saúde combalida, optou por esse caminho.

    Durante o período final, Bento 16 prossegue no exercício do papado. Continua adotando as medidas de sua competência. Manterá seus encargos até a escolha de seu sucessor, mas já liberado das tarefas atuais. Aguardará a eleição do novo papa pelo conselho dos cardiais que representam o mundo católico. É de acreditar que surjam pedidos de seus admiradores para que não saia. Haverá também quem insista no cumprimento da renúncia.

    Entra na linha da avaliação, depois de sua fala, durante a missa, a possibilidade de que se arrependa. Que retire o pedido em tempo hábil.

    A interpretação aplicável esbarra no fato de que não há, na história do papado, paradigma igual ao enquadramento de desistência do renunciante.

    O último caso remotamente assemelhado surgiu há centenas de anos. O pontífice se apaixonou por uma senhora. Abandonou suas funções. Pouco depois, quis voltar ao cargo. Não foi
    aceito.

    A situação de Bento, embora política, será avaliada em termos do direito canônico, que corresponde ao conjunto dos cânones ou das normas aplicáveis à Igreja Católica e a seus seguidores. Fora da igreja, não é direito propriamente dito, à moda das nações com seus governos e governantes. Assim será para o deferimento da renúncia e para avaliação do eventual arrependimento.

    Seriam aplicáveis as leis comuns, do Vaticano, em uma de tais alternativas? Recordemos que os preceitos eclesiásticos da Igreja não se confundem com a lei local, nem a lei local afasta o predomínio dos códigos canônicos para os temas da fé. Uma exceção é o casamento religioso com efeitos civis, permitido pela lei brasileira. Cuida-se de exceção aceita para as duas cerimônias, a civil e a religiosa, se assim for desejado pelos nubentes.

    A duplicidade das leis invocadas (a religiosa e a constitucional) não é cabível na análise da missiva com a qual o pontífice documentou sua renúncia. Trata-se de ato exclusivamente canônico, não encontrado em qualquer outra situação histórica do catolicismo, no qual quis "comunicar uma decisão de grande importância para a vida da igreja".

    Alude às rápidas transformações do mundo. Admite que "nos últimos meses" seu vigor diminuiu. Afirma a incapacidade de continuar no exercício das funções de chefe de sua Igreja, para as quais foi eleito. Anuncia que deixará vaga em "28 de fevereiro de 2013, às 20 horas, a sede de Roma".

    Quem vier depois e, outrossim for competente (são suas palavras) convocará "o conclave para a eleição de um novo papa". Até lá, estará livre, em face das situações delineadas na missa,
    desistir da renúncia ou a retardar, o que parece possível ante o vigoroso pronunciamento desta semana.

    walter ceneviva

    Escreveu até novembro de 2013

    É advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. Assinou a coluna Letras Jurídicas, em "Cotidiano", por quase 30 anos, tratando com cuidado técnico, mas em linguagem acessível, de assuntos de interesse para a área do direito.

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