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    Walter Ceneviva

    Francisco e o direito canônico

    DE SÃO PAULO

    20/07/2013 03h00

    A visita próxima do papa Francisco, primeiro desse nome, primeiro sul-americano e, além do mais, argentino, sugeriu o tema. As questões da segurança do papa predominam no noticiário, mas, nesta coluna, em termos jurídicos, parece oportuno examinar no diálogo com o leitor o debate suscitado quando se pergunta como e quando aplicar o direito canônico, em face do direito brasileiro.

    A questão cabe porque prepondera, em nosso país, a liberdade religiosa e de todos os cultos. É assegurada no sexto e no sétimo incisos do art. 5º da Constituição. Garantem inviolabilidade de crença, livre exercício dos cultos, proteção de locais de culto e liturgias, bem como a assistência religiosa a entidades civis e militares de internação coletiva. Logo, é livre a manifestação de alegria ou de contrariedade, de cada brasileiro, com a visita.

    O oitavo inciso do art. 5º impede que alguém seja privado de direitos por motivos de crença religiosa, o que não significa a liberdade de ofender a crença alheia ou os representantes dela.
    As perguntas óbvias sobre disposições constitucionais, que parecem dizer o contrário, têm lembrado feriados religiosos que privilegiam denominações cristãs e casamento religioso com efeitos civis, celebrados por dignitários das religiões reconhecidas. A norma republicana de 1891 definiu a liberdade religiosa, inexistente no Império --quando só era admitida a religião católica, sendo proibidos até templos de outras denominações. Não subsiste no presente.

    Voltando ao casamento religioso, para ficar no exemplo mais característico da interação dos direitos constitucional e religioso (por exemplo, na sagração de pessoas das mais variadas correntes religiosas, como titulares da correspondente pregação), invoca a possibilidade de se integrar o direito canônico com o direito comum. A denominação "canônico", porém, traz no Brasil a marca exclusiva da Igreja Católica, não aplicável a cidadãos de outras crenças. Na Inglaterra, o "canon" se liga à Igreja Anglicana.
    Também podem ser lembrados outros exemplos de religiosos de diversas correntes da fé, alheios ao direito canônico.

    A garantia do pluralismo religioso é uma das belezas da verdadeira democracia, até na admissão integral do ateísmo, daquele que nega toda credibilidade a um ser supremo, que nós chamamos Deus. Voltando aos papas: as homenagens que lhes serão prestadas no Brasil compõem tratamento constitucional, porque, além de ser chefe de sua igreja, Francisco é também soberano do Estado do Vaticano, assim reconhecido pela Organização das Nações Unidas.

    Em síntese: o direito canônico não se liga, não se subordina nem é subordinado ao direito comum. A conclusão inclui o tratamento ao papa em visita, por isso mesmo integralmente apropriadas as homenagens oficiais prestadas ao Estado Vaticano.

    O leitor perguntará: como fica o direito? A resposta dos estudiosos é variada. Os doutrinadores católicos veem no direito canônico a expressão dos termos em que o cristianismo o sustenta, com valores transmitidos a todos os católicos. Os não católicos discordam em grande parte, como é natural. É de lembrar a origem comum, no Velho Testamento, de cristãos, islâmicos e judeus.

    Enfim, não há solução para uma paz definitiva.

    walter ceneviva

    Escreveu até novembro de 2013

    É advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. Assinou a coluna Letras Jurídicas, em "Cotidiano", por quase 30 anos, tratando com cuidado técnico, mas em linguagem acessível, de assuntos de interesse para a área do direito.

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