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    Zeca Camargo

    Na terra de Svavar

    08/05/2014 03h00

    Pedi para o guia que me recebeu no aeroporto de Reykjavik repetir seu nome três vezes, logo depois de ele ter se apresentado. A segunda foi mesmo para compreender direito o que ele falava. Mas a terceira foi pelo puro prazer de ouvir aquele som: "Svavar" -até agora o nome mais "cool" que já encontrei pelo mundo (capaz de desbancar até o de Fakasoa, um amigo que fiz em Tuvalu).

    Estive na Islândia exatamente há um ano e inevitavelmente lembrei-me daquelas paisagens únicas quando fui ver "Noé" –duvidoso sucesso de bilheteria, atualmente em cartaz. No filme, depois do dilúvio, sua arca repousa num cenário desolado, mas inspirador –dois adjetivos que não saíam da cabeça nas viagens que fiz pelo país. E, tentando identificar exatamente onde aquelas cenas tinham sido registradas, senti falta de Svavar, que sem hesitar poderia ter me dito não só o nome daquela montanha, como sua altitude e, no caso de ser uma formação vulcânica, a data exata da última vez em que sua cratera entrou em erupção.

    É primavera nesta época do ano da Islândia –o que significa que os dias já estão um pouco mais longos. Da choupana onde eu relaxei isolado de tudo por três dias –ela ficava à beira de um lago congelado, pertencia ao avô de Svavar, e estava a 35 quilômetros da cidade mais próxima–, eu via o Sol projetar uma longa sombra minha na neve até mais ou menos 22h. E, quando eu não despertava no meio da noite com o som das placas de gelo se chocando, por volta das 4h da manhã eu já tinha um facho de luz penetrando minha janela a me acordar.

    Foram dias de descanso e reflexão –um presente que eu mesmo me dei ao completar 50 anos. Svavar sempre propunha uma atividade por dia: uma caminhada, uma escalada simples, um passeio de carro por vulcões, esqui puxado por trenó mecânico, mergulho em águas cristalinas com temperaturas muito próximas de zero (você não imagina a roupa que eu tive de usar para passar por esta experiência).

    Mas a melhor parte da rotina era o jantar. Sempre simples: um churrasco improvisado, acompanhado de uma cerveja artesanal local (chamada Júdas Quadrupel Nr.16 –mas podia ser também a Jesús Ljósöl Nr.24). O prazer maior, porém, não estava exatamente na comida, mas na conversa de Svavar. E menos até nas suas histórias –geralmente recheadas de mitos, duendes, e o que os islandeses chamam de "huldufólk", ou "povo escondido", que vive atrás das pedras– do que nas sílabas que elas continham.

    Mesmo conversando num inglês impecável, Svavar jogava em cada frase pelo menos uma palavra em sua língua, com contrações inesperadas do seu aparelho vocal na hora de pronunciar os longos erres; ou aqueles esses que são quase assobiados; ou o estranho "tl" (veja o que acontece com sua língua quando você pronunciar "Catlerina"); ou o indecifrável "dh" (tipo "dhemais") que surge de repente como um pequeno suspiro.

    E é a mistura desse som com aquela paisagem que me faz ter saudade da Islândia. Uma saudade prematura talvez –se é que existe um limite de tempo para alguém querer voltar a algum lugar. Mas que, quando bate, eu consigo contornar apenas dizendo em voz alta o nome de Svavar.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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