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    Zeca Camargo

    Buenos Aires, de novo

    22/05/2014 03h00

    É possível redescobrir um lugar que já visitei tantas vezes? Acordo cedíssimo de uma madrugada insone de trabalho na cidade. Está menos frio do que minha mala indica que eu esperava. Saio só com uma camiseta e um sobretudo –e acerto. E no primeiro passo que dou na rua Humbolt percebo que não sei aonde quero ir. Mas sei o que quero fazer.

    Parto num passeio sem itinerário por Palermo Viejo. Sempre que volto aqui, vou aos mesmos lugares: um restaurante de que gosto e um que quero experimentar; uma livraria (Eterna Cadência) e uma loja de discos (Miles); a órbita em torno de Honduras com Gurruchaga.

    Mas desta vez, não. Lojas, restaurantes e quase todos os cafés estão fechados. Sobram as ruas e suas esquinas para me distrair. Só que não quero ser distraído. Quero que meu olhar se esforce para ver o que ainda não vi, num canto do mundo onde já vi tanta coisa. E as ruas me respondem com um sonolento entusiasmo.

    "Arriesgá todo", convida um cartaz. A referência, claro, é à Copa do Mundo. Mas tomo como um recado pessoal e logo sou surpreendido por um clichê: uma parede pichada com Mafalda e sua turma –os imortais personagens do cartunista Quino. Inesperadamente, eles decoram uma lavanderia, "Lava Ya", que fica não muito distante da sede do "budismomoderno.com –onde budas coloridos guardam os domínios do "venerable Gueshe Kelsang Gyatso".

    Na calçada em frente, um jovem casal troca beijos como se ainda fosse meia-noite. É fácil ser bonito quando se tem 19 anos, mas é mais fácil ainda em Buenos Aires. Estão chegando de uma festa ou saindo para o trabalho? Aproximo-me, e o cheiro de banho tomado revela que eles estão prontos para o dia. Mais adiante, uma placa na janela informa: "PEINADOS" com letras antigas. Logo abaixo, em incompletos caracteres "más pequeños" (adoro lembrar que a construção que fere nossos ouvidos em português é corrente aqui), lê-se: "Arreglo rop_/cambio cierr_s".

    Quando conheci Palermo Viejo, em 2000, não havia ciclovias. Agora, são inevitáveis. "Concientizate ¡Usa la bici!". "Tres autos a menos". A campanha pelas ruas é forte. Para quem faz muito exercício... Dulcería Tiempo de Chocolate! Onde mais vou encontrar barras em forma de chuteiras? Ao lado, um novo café vai demorar para abrir, a julgar pela lentidão com que o rapaz monta suas mesas.

    Um senhor se debruça sobre o capô aberto de seu carro. Um taxista para e acende um cigarro. Um restaurante com o nome improvável de "Lo de Jesus" anuncia "parrilla & vermú". No topo do tronco de uma árvore cortada, descansa um leão de porcelana –um enigmático guardião de uma casa de tacos. Como um respiro para os ângulos dramáticos da arquitetura recente que redesenhou essas ruas, uma praça dá boas-vindas ao céu cinzento.

    Uma figura elegante passa vestida num longo casaco lilás sombrio. Resolvo segui-la. Ela entra num café. Entro também? Ela sai em seguida e pergunto, num reflexo, se já estão servindo. "Claro que sí", responde ela sem intimidade, correndo para pegar uma mesa na calçada. Escolho uma mesa dentro.

    Começo a escrever então este texto, diante de uma frase escrita na parede: "El poeta y el panadero son hermanos en la esencial tarea de alimentar al mundo". Penso que quero fazer pão enquanto outras Buenos Aires me esperam lá fora.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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