• Colunistas

    Thursday, 02-May-2024 15:24:56 -03
    Zeca Camargo

    Fronteira inesperada

    28/08/2014 02h00

    Valentina Fraiz

    Meu guia tinha acabado de dar um tapa na minha cara e eu, atordoado, não sabia bem como reagir. Estava cansado, talvez delirando um pouco, e ainda nem havíamos chegado à aldeia onde descansaríamos naquele dia. O tapa não era uma ameaça, mas um alerta: eu precisava reunir forças e seguir em frente naquele canto quase esquecido do mundo.

    A ideia de visitar Papua-Nova Guiné surgiu de repetidas visitas ao Museu do Quai Branly, em Paris, e ao Metropolitan, de Nova York –na exuberante sala dedicada à Oceania. Essa minha "mania de viajar" acabou brotando em mim uma paixão pelas artes que já foram chamadas de primitivas. Máscaras, instrumentos musicais, artigos religiosos, tecidos, adereços –eles sempre contam um pouco da cultura desses cantos menos explorados do mundo. E nos fazem procurar conexões com tudo o que é humano.

    Quando chegava às vitrines com artefatos de Papua-Nova Guiné, porém, eu sempre me perguntava de onde aquelas coisas tinham vindo. Tão estranhas e fascinantes, como se outras civilizações estivessem nos mandando mensagens de outros planetas! Eu tinha que conhecer o lugar de onde vinham aqueles objetos.

    Papua-Nova Guiné não é exatamente um dos lugares mais fáceis de se chegar. Fiz uma conexão na Europa, depois em Bancoc, Cingapura. Cheguei em Port Moresby, sua capital, mas ainda pegaria um voo doméstico para Rabaul –e, de lá, um barco até o ponto de onde partiria minha expedição.

    Nos quatro dias seguintes, eu andaria 75 quilômetros, acompanhado por um guia (Pen, que era natural do Zimbábue), um "trilheiro" (com o curioso nome de Weekly) e dois carregadores, Solomon e Ezequiel. Eles estavam acostumados, claro, mas eu... Digamos que eu inventei uma viagem que, só quando a terminei, descobri que eu não tinha mais idade para fazer...

    Eram horas de caminhada por dia, por terrenos difíceis, matas densas e umidade constante. No terceiro dia, beirando o desespero, depois de mais de duas horas por um trajeto que só parecia subir, entreguei os pontos. Larguei tudo no chão e disse que não aguentava andar mais, que estava exausto, e deveríamos descansar ali mesmo. Foi então que levei o tapa de Pen.

    Tínhamos uma "missão" para cumprir: caminhar até a aldeia onde aconteceria, naquela noite, uma "dança do fogo". Se não chegássemos, perderíamos o evento –essas coisas por lá não acontecem com a regularidade de um parque de diversões, como você pode imaginar. Era ir até lá ou se arrepender de perder um dos pontos altos da viagem, informava Pen, enquanto checava se meu rosto estava muito marcado.

    O tapa, de certa maneira, me trouxe de volta à realidade –e fez com que eu estivesse na aldeia antes de anoitecer, pronto para assistir a uma das cerimônias mais lindas e misteriosas que eu vi em to- da a minha vida de viajante. Aquelas máscaras que eu só via em museu ganhavam movimento diante dos meus olhos, e meus ouvidos eram hipnotizados pela simples percussão de bambus –tudo à luz de uma gigantesca fogueira.

    Ao voltar de lá, porém, senti pela primeira vez que o corpo me apresentava uma fronteira para a qual eu não tinha renovado o visto: a da sua resistência. E penso nisso quando escrevo o texto de hoje de uma cama de hospital –mais uma experiência inédita para mim.

    Uma pneumonia me derrubou, mas, como todo mundo insiste em me dizer, era meu corpo que estava me dando um aviso –um pouco mais urgente, dessa vez, do que aquele que eu recebi em Papua-Nova Guiné. Será que é tempo de rever limites nos meus horizontes? É o que vou descobrir nas minhas próximas férias!

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024