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    Zeca Camargo

    Chá, açúcar e sonho

    20/11/2014 02h00

    Já eram quase 2h e nós estávamos tentando negociar com a taxista se ela levaria seis pessoas no seu carro, de Beyo?lu a Sultanahamet. A temperatura ameaçava cair ainda mais –já sentíamos os 14°C– e não estávamos chegando a um acordo. Não quanto ao preço, mas quanto à língua em que deveríamos negociar. O inglês dela era precário, meu turco, insignificante –a saída improvável foi o português. E não é que chegamos direitinho ao hotel?

    Tudo dá sempre certo em Istambul, minha cidade favorita no mundo –e é por isso que escolhi falar dela agora, quando esta coluna celebra seu primeiro ano. Alguns vão reclamar do trânsito –que é de fato infernal. Outros, das torturantes negociações de preços no Gran Bazaar (a não ser que você vá nas lojas de meu amigo Gürelli). Alguns, até talvez reclamem de cocô de pombo nas ruas... Mas a soma das belezas da cidade é muito maior do que isso.

    Um momento favorito na cidade? Não quer escolher comigo?

    Pode ser um jantar cedo no restaurante que tem as melhores vistas para a Mesquita Azul. É preciso chegar antes das 19h para pegar uma mesa à janela –e um dia, zonzo de fuso horário, estava lá acompanhado numa mesa para dois, quando ouço uma gente chegando e falando português. Surpreso, vou ver quem era e descubro uma colega de trabalho de quem não era amigo ainda –e dela me tornei inseparável (junto com todo o grupo). Uma amizade selada em Sultanahamet.

    Ou pode ser um passeio apaixonado para fazer a digestão depois de um jantar em Ortaköy, terminando na praça onde a pequena mesquita tenta em vão procurar um reflexo da sua linda arquitetura nas águas turbulentas do Bósforo. Aliás, é ele mesmo que oferece um momento precioso, se você está num barco, coberto de cobertores, olhando a luz sumir no fim da tarde destacando a silhueta da parte antiga da cidade.

    Minha refeição favorita por lá foi num restaurante que não existe mais, o Abracadabra –também às margens do Bósforo, em Arnavuktöy. A chef Dilara Erbay que preparou o jantar é turca e explora essa herança nas receitas. Mas seu chef principal naquela época era paquistanês; o subchef, filipino; uma assistente era francesa e a outra, grega. E a comida, que misturava tudo isso, era uma maravilha... Diz que Dilara anda por Nova York –sorte de Manhattan!

    Talvez o momento mais inesquecível tenha sido no ano passado, quando, na companhia de muitos amigos queridos –inclusive aqueles que fizemos lá–, tínhamos a Cisterna da Basílica só para nós. O lugar é esplendoroso: um reservatório com fileiras de colunas, um lençol de água aos nossos pés –e um monte de turistas fazendo barulho...

    Mas nessa noite tínhamos reservado o espaço para nós, e como se a beleza por si só não fosse suficiente, ainda deixamos um grupo de dervixes sequestrar nosso olhar (e nossa imaginação) no seu rodopio.

    Ali mesmo, na cisterna, numa viagem anterior, vi algo inusitado. Sentado no café, escrevendo cartões-postais (sim, ainda sou desses!), vi um grupo de italianos chegar, visitar e ir embora em menos de cinco minutos. O espaço não ficou exatamente silencioso quando eles saíram, mas em contraste com a algazarra anterior a cisterna ficou quase muda.

    Eu já retomava meus postais quando do alto da escada de saída uma mãe gritou para o filho que havia ficado lá embaixo, hipnotizado pelas colunas: "Dove sei ragazzo? Siamo in ritardo!" (Onde está, menino? Estamos atrasados). O menino, por pirraça ou puro transe, fez sua mãe esperar um longo minuto antes de subir. E eu o entendi.

    Foi naquela mesma tarde que aprendi com um cara que cuidava de um cyber café como pronunciar a palavra "obrigado" em turco. Só de ler já é complicado: "te?ekkür ederim". Eu até tentava, mas vendo meu esforço em agradar, ele me ajudou: "É só falar chá, açúcar e sonho, em inglês, com sotaque turco!". Ou seja: "tea sugar and dream", caprichando na aspereza do "t" e dos "erres".

    E foi assim que eu agradeci à taxista que nos levou. A quem me acompanhava em Ortaköy. A toda a equipe da Dilara. Aos dervixes da cisterna. E é assim que eu agradeço a toda a cidade sempre que saio de lá, com a certeza de que vou voltar.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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