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    Zeca Camargo

    O silêncio em Bancoc

    04/12/2014 02h00

    Dava para ouvir a gota de suor escorrendo pelas costas. Ou melhor, as gotas. Também dava para escutar os incensos queimando em Erawan. Os perfumes amassados das oferendas de flores. Os cartazes gritando os descontos de até 70% na grande "liquidação da meia-noite". Os mudos movimentos labiais dos alunos nas aulas de inglês visíveis das janelas do metrô suspenso. Eu ouvia os cegos com seus microfones pedindo moedas, os elefantes de concreto e espelho, o sabor dos sucos nas prateleiras, o rosa-choque e o verde-limão dos táxis, o som das conversas de texto num alfabeto tão lindo quanto impenetrável –pelo menos para mim.

    Nada como aproveitar o silêncio em Bancoc. Cheguei à cidade há três dias, mas só ontem à noite (dia 27) pude me lembrar do prazer que é vagar por suas ruas caóticas. Estou viajando a trabalho. Tenho constantemente gente ao meu redor. Mesmo em momentos mais tranquilos, estou acompanhado de uma equipe. E eu acho que estava sentindo falta de ficar um pouco sozinho.

    Não me interprete mal: sou abençoado com a sorte de viajar com colegas que trabalham na mesma vibração que eu, com a curiosidade aguçada para descobrir coisas e se excitar com elas. No caso dessa jornada de agora (uma nova volta ao mundo explorando a televisão), já mesmo nesses primeiros dias posso afirmar que me sinto viajando com amigos. Mas é que eu sempre apreciei poder andar sozinho pelas cidades que visito, e ainda não havia conseguido fazer isso desta vez.

    Esse é sempre um excelente exercício onde quer que você chegue –preciso me lembrar de um dia escrever aqui sobre bons passeios para se fazer desacompanhado pelo mundo! Mas em Bancoc ele é ainda mais fundamental. Suas ruelas tortas, suas avenidas congestionadas (mesmo as calçadas!), sua silhueta de arranha-céus embaralhados com "nagas" (os acabamentos em forma de serpente nos telhados dos templos) –tudo aqui parece distrair sua atenção. E, se você está acompanhando, conversando com alguém, as chances de não se conectar com a cidade são grandes.

    Por isso mesmo, ontem (dia 27) quando as gravações terminaram, corri para me reencontrar sozinho com Bancoc. E embarquei feliz no silêncio tão peculiar desse local.

    Fui constantemente rodeado de ruídos –é impossível evitá-los. Cruzei suas ruas engarrafadas, atravessei passarelas futuristas, passei por gente que me olhava com um misto de indiferença (estranhamente) e reconhecimento. Ouvia de tudo. Mas era o silêncio interno que me guiava, e me abria as possibilidades de sons que nem minha imaginação mais alucinada seria capaz de criar. Aos poucos, fui ouvindo de novo Bancoc conversar comigo.

    É uma comunicação às vezes truncada. Um curry que nunca havia experimentado, com peixe defumado e fígado de galinha, urrava na minha boca de tão apimentado (e olha que não sou fraco). Os camelôs quase o tiram do sério quando afunilam a passagem. O calor, mesmo depois que o sol se põe, soa como uma orquestra de trombones e parece colocar mais 20 quilos nos seus ombros.

    Mas esses detalhes somem diante de todas as coisas fascinantes que Bancoc tem pare te contar –regadas de brilhos, perfumadas de capim-limão, iluminadas por uma luz incerta como a da vitrine do Alfaiate July, onde um blazer impecável, ao lado de uma foto do adorado rei da Tailândia, me faz pensar que esta é talvez a única loja que não mudou em nada desde que estive aqui pela primeira vez, há mais de dez anos.

    Nesse diálogo silencioso e exuberante com Bancoc eu nunca quero colocar um ponto final.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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