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    Zeca Camargo

    A hora do gongo

    26/02/2015 02h00

    Já tentou contar música balinesa? Você leu certo: contar, e não cantar. Contar mesmo, como uma valsa: um, dois, três, um, dois, três... Ou num familiar "one two three four" num rock surrado, ou num sucesso imortal como "Hey Ya!", do Outkast. Contar música balinesa exige mais que isso: com sua métrica desafiadora (pelo menos para os ouvidos ocidentais) e o poder hipnótico do gamelão (o conjunto de instrumentos balineses) esse universo musical é, pelo menos para quem o escuta pelas primeiras vezes, impenetrável.

    Porém, eu estava em Bali para aprender alguns movimentos da sofisticada dança local –e, no caso, saber contar a música da coreografia que estavam me ensinando era fundamental. Sobretudo porque a certa altura, depois de contrair os músculos ao limite, quando tocasse o gongo (um dos instrumentos do gamelão), eu poderia relaxar para mudar de direção e seguir com a dança para o outro lado. Mas como adivinhar a que horas o gongo iria tocar?

    Essa não era nem a primeira aula. Eu já estava em Bali há umas boas duas semanas, já quase acostumado ao horário elástico da rotina daquele lugar, provavelmente o mais bonito de toda a Indonésia. O curso era bem cedo, antes das 6h –uma vez que o calor não permitia que se fizesse qualquer movimento mais intenso depois das 8h! O resto do dia era livre para explorar a ilha e, em quase dois meses por lá (era o tempo em que ainda existiam, na minha vida, férias longas assim), olha que nós exploramos com vontade...

    Éramos um grupo de 11 pessoas, unidas pela dança, pela distância e pelo desconhecido, e até que nos demos muito bem. Os passeios eram independentes: cada um era livre para criar seu próprio itinerário. Surfar nas praias mais "de turista"; explorar o interior de um vulcão (dormente) de moto; passar uma tarde num resort de luxo (para quem tinha um pouco mais de economias); fazer um workshop de batik (aquela técnica de estampa típica de Bali); entrar de bico numa daquelas cerimônias perfumadas e coloridas (podia ser um casamento ou um funeral); ser abduzido por macacos num templo dedicado a eles; ou mesmo entregar-se ao Saprek, um senhor de mais de 90 anos, com menos de 1,50 m de altura, mas que era o melhor massagista de toda a ilha –uma aventura única, incluindo o líquido turvo que ele guardava num vidrinho e fazia questão de colocar em todos (todos!) os orifícios do seu corpo.

    O importante era que nos reuníssemos sempre para trocar casos e experiências no jantar. O lugar pouco importava, mas sim a conversa, uma arte que hoje resolvemos com um Whatsapp, mas que naquele tempo (eram os anos 80), ainda preferíamos praticar olhando nos olhos uns dos outros.

    O ritual era sempre cedo, por volta das 19h, já que muitos (eu inclusive) tinha de acordar cedo para a aula de dança. Quase nunca falávamos sobre isso, talvez pelo constrangimento de confessar que não estava sendo fácil para ninguém. Até que um dia uma amiga criou coragem e perguntou: "Alguém consegue contar a música e saber quando o gongo vai tocar?". Foi uma gargalhada geral!

    Descobrimos que todos ficavam apavorados quando o professor, Dimati, anunciava em inglês: "Gong coming! Gong coming!". Até então só havíamos trocados olhares apreensivos nesse momento da aula, mas era a primeira vez que admitíamos que ninguém sabia qual era a hora do gongo –e como nos bons momentos de cumplicidade espontânea que sempre surgem em viagens, selamos ali não só nossa amizade, mas nossa ligação com aquele lugar que é, sim, especial.

    Natureza, seus cinco sentidos, uma paz de espírito, um abandono do relógio, o próprio som do gamelão, tudo se mistura para te dar a impressão de que em Bali você está mesmo passando uns dias no paraíso. Onde, de vez em quando, a gente ouve o gongo tocar...

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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