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    Zeca Camargo

    As vibrações do Nepal

    07/05/2015 02h00

    Uma coisa é ver uma notícia ruim no jornal sobre alguma catástrofe. Outra é ver uma notícia dessas sobre um lugar que você já visitou. Especialmente quando a tragédia aconteceu num lugar onde você teve uma experiência excepcional. Foi essa sensação de estranha familiaridade solidária que vivi esses dias, quando vi imagens de Bhaktapur, no Nepal, sendo devastada nos terremotos recentes. Foi na forte lembrança das minhas passagens por lá que encontrei uma maneira de mentalizar coisas positivas para um povo que me recebeu tão bem.

    Na primeira vez em que passei por lá, fiquei instantaneamente encantado. Como um lugar tão pequeno era capaz de transmitir uma energia tão forte?

    A chegada a Katmandu era um convite a abraçar o diferente, não com um mero fascínio do olhar –que fica perdido em meio a tanta beleza–, mas com a intensidade da vida espiritual que logo o cerca. Lembro-me do hotel em que fiquei (Vadjra) e da sua vista para as montanhas –que já eram um convite à devoção. E você não precisa ser budista para sentir isso, basta ter fé... qualquer fé.

    Fui mais de uma vez a Bhaktapur, ali ao lado, e ainda sem entender muito o que acontecia ao redor, procurava nas janelas do templo um rosto de criança, a "deusa menina", que era substituída sempre que a titular entrava oficialmente na adolescência. Acho que num flash inesperado cheguei a vislumbrar o pequeno rosto que conferia, com certo desdém, os "meros mortais" que passeavam do lado de fora do tempo –que torço para que não tenha sido um dos destruídos pelo terremoto.

    As lembranças da segunda viagem ao país, feita em 2004, são mais vivas –e talvez menos românticas. Fiquei no mesmo hotel que da primeira vez, mas a visão das montanhas tinha mudado radicalmente: no lugar da natureza, via agora favelas. E me entristeci.

    Procurei nas ruas de Katmandu e Bhaktapur a mesma motivação espiritual que encontrei da primeira vez, mas senti que ela estava dispersa. Conversei com um monge sentado num templo aqui, com um adolescente que levava um macaco na coleira ali, com duas estudantes "modernas" que pareciam atravessar aqueles monumentos como que deslocadas no tempo –mas não detectei boas expectativas em ninguém. Crises políticas e uma pobreza insistente pareciam ter mudado a vida dos nepaleses.

    No meu último dia de viagem, porém, um vendedor de mandalas –aquelas elaboradas pinturas dedicadas à meditação– reacendeu minha esperança de que o Nepal ainda carregue uma promessa espiritual. Emocionado, ele me contava que sua noiva, uma mulher belga que conheceu quando ela estava de passagem por lá, logo chegaria para viver com ele. Nos seus planos, e na sua alegria, vi a centelha de um renascimento que, pelos e-mails que trocamos depois desse encontro, estava mesmo acontecendo: sua noiva chegou, eles estavam juntos, e mantive contato com ele até o nascimento de sua filha.

    Há tempos, porém, não tenho notícias suas –e com a triste tragédia do Nepal, orei pela recuperação de todo aquele patrimônio, pelas vítimas do terremoto, e também pela família daquele nepalês, que me ofertou a mandala mais linda que eu tenho na minha casa...

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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