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    Zeca Camargo

    'For the record'

    27/08/2015 02h00

    Não foi nem na primeira, nem na segunda vez que visitei Londres. Tenho quase certeza de que foi na terceira –mas pode ter sido na quarta. Era dia 31 de dezembro, e eu estava na loja da Rough Trade, um selo que ainda inspira respeito mesmo nesses tempos em que o universo da música é tão pulverizado. Em 1986, então, quando eu pus pela primeira vez meus pés na sua loja principal, na Talbot Road, aquilo era uma espécie de templo sagrado.

    Não tenho certeza quanto tempo passei lá, mas vamos dizer que foram horas, para um cálculo mais aproximado. Ou ainda, foi o tempo suficiente para um viajante com orçamento baixo sair de lá com cerca de 40 discos de vinil. Sim, os CDs já eram uma realidade em 86, mas eu sempre demorei um pouco para, digamos, "abraçar novidades".

    Perambulando pelas prateleiras, deparei-me com um cara que parecia ter minha idade. Certamente tínhamos o mesmo interesse musical, pois trocávamos olhares disfarçados, um conferindo o que o outro estava comprando –e me surpreendi com muitas coincidências.

    Outra coisa que me chamou a atenção era que ele parecia ser indiano. Como estava em Londres, voltando da minha primeira viagem à Índia, de onde saí fascinado, não pude deixar de reparar nesse detalhe.

    Absorto em minhas escolhas –quem disse que eu tinha dinheiro para levar tudo que queria?–, perdi-o de vista. Saí da Rough Trade com as ruas já escuras, mas como era inverno, deve ter sido por volta das 16h. As três sacolas provaram ser bem pesadas, mesmo no curto trajeto até o metrô, e, quando me sentei esbaforido no vagão, reparei que o "indiano" estava ao meu lado. Havia entrado provavelmente em uma estação anterior.

    Reconhecendo-me, perguntou: "Você não conseguiu vender seus discos?". Levei um tempo para entender. Ele havia ficado tão impressionado com a quantidade que eu levava que não imaginou que eu tivesse comprado tudo –mas, sim, que estava vendendo coisas da minha coleção! Expliquei que de onde eu vinha não era fácil achar aqueles discos, e ele na hora achou que eu era indiano! Dei uma risada e contei que era brasileiro.

    Foi assim que conheci um dos meus melhores amigos até hoje –um americano de mãe indiana. E a costura dessa amizade sempre foi a música, as lojas de discos e o clima musical de Londres.

    De lá para cá, claro, esse cenário mudou bastante. Acompanhei, com tristeza, primeiro o fechamento das grandes cadeias: Tower Records, de Picadilly, Virgin, de Tottenham, a gigantesca HMV, de Oxford (só sobrou uma pequena). Depois, foram-se as lojas independentes do Soho, South Kensington, Camden Town. Minha peregrinação musical, obrigatória em cada escala londrina, foi ficando cada vez mais curta. Até porque fui descobrindo outras maneiras de ouvir e consumir música.

    Da última vez em que estive lá, em maio deste ano, só consegui visitar a Sounds of the Universe e a Sister Ray (que mudou-se para um espaço bem menor). Pensei em passar pela Rough Trade, mas não deu tempo. Se tivesse ido, talvez pudesse surpreender meu velho conhecido com uma nova descoberta –por exemplo, o funk reinventado de um londrino chamado Dornik...

    Mas eu chegaria atrasado. Meu "amigo indiano" provavelmente já "baixou" esse álbum da internet. E nossos templos musicais agora são meros registros de nostalgia de uma Londres que já não existe mais –e que no máximo nos permite brincar com o duplo sentido da expressão em inglês do título de hoje.

    "For the record" –"para ficar na memória" ou "em nome do disco"!

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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