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    Zeca Camargo

    Respeito ao Chile

    24/09/2015 02h00

    O lugar se chamava Vale da Lua, mas o calor e o ar seco, que faziam sangrar o nariz, não deixavam ninguém se esquecer de que estávamos não só na Terra, como num dos cantos mais inóspitos dela.

    É claro que, a menos de 10 metros, a guia estava com sua mochila ainda repleta de garrafinhas de água –sem falar que um almoço generoso aguardava nosso pequeno grupo no hotel. Mas isso não afastava a sensação de que essa era uma aventura especial.

    E isso num país onde eu já havia experimentado uma corrente de ar frio na base de um vulcão, já tinha curtido a brisa do Pacífico, já havia congelado meu pé numa cidadezinha encravada na neve e também já tinha olhado com reverência para a cadeia de montanhas que espreme sua capital contra o mar e pensado: "Taí um lugar que merece respeito".

    Esse lugar merece também solidariedade. Afinal, o Chile aparece com frequência incômoda nos noticiários por causa de perigos naturais. Na semana passada, diante da ameaça de um tsunami, vimos a presidente Michelle Bachelet dizer: "Mais uma vez temos que enfrentar um poderoso golpe da natureza".

    As vítimas foram relativamente poucas, se comparadas a outras tragédias na região –em um terremoto em 2010 foram mais de 500 pessoas. Mas mais de 1 milhão de pessoas foram deslocadas de áreas de risco para escapar da ameaça de ondas gigantes.

    Apesar disso, quero celebrar o Chile como uma terra de maravilhas. A mesma natureza que ameaça constantemente o país concentra num só território belezas incríveis. O tal Vale da Lua, por exemplo, fica no deserto do Atacama –um dos mais bonitos que já visitei no mundo.

    No mesmo Chile, experimentei a maravilha de acordar em Pucón (bem cedo) e admirar a beleza que é ver o dia começar ao pé de um vulcão com sua cratera coberta de neve. Ainda não tive a chance de ir até o extremo sul do país –está na minha lista de prioridades! Mas acho que já conheço o Chile bem o suficiente para eleger meu lugar favorito: é um vilarejo pequeno, hoje quase abandonado, chamado Sewell.

    Declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, Sewell é mais uma cidade-fantasma. No seu auge, lá pela primeira metade do século 20, chegou a ter 15 mil habitantes, mas nenhuma rua: só escadas, que conectavam os alojamentos das famílias dos mineiros na extração de cobre.

    A mina, El Teniente, ainda é ativa, mas os trabalhadores hoje vivem em Rancágua, ao pé das montanhas. E, mesmo com o registro daqueles dias difíceis, não há quem não sinta saudades de Sewell. Ninguém mais, aliás, do que o senhor Eduardo.

    Quando visitei a cidade, em 2008, ele foi meu guia informal –e suas lembranças da vida a 2.200 metros de altura vinham como uma avalanche. Aos 81 anos, ele não se esquecia dos degraus onde conheceu sua mulher, da dificuldade de ver seus filhos nascerem no simples posto de saúde que havia por lá, dos bailes animados no clube social, mas sobretudo das noites em que brilhava no Palitroque.

    Nessa casinha pintada de azul funcionava o boliche de Sewell, onde o senhor Eduardo era o indisputável campeão. Seu truque, ele me explicava entusiasmado, era apoiar-se na perna direita (e não na esquerda, como seus amigos) na hora de jogar a bola.

    Era um strike atrás do outro, contava-me ele, com um sorriso que só não era maior do que quando ele se lembrava de Sewell nas festas de dezembro: com as casinhas coloridas, ruas iluminadas e a neve cobrindo tudo, "sua cidade" brilhava como uma árvore de Natal esculpida dos Andes.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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