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    Zeca Camargo

    Turbantes, buzinas, elefantes

    08/10/2015 02h00

    A expressão é tão comum que quase se tornou um mantra na Índia: "Horn please". Ao mesmo tempo simples, polido e infernal, o pedido estampado em boa parte dos carros por lá é antes de tudo prático. Quer ultrapassar –numa rua, avenida, estrada?– Buzine, por favor!

    Nos 30 anos que se passaram desde que conheci esse país fascinante pela primeira vez, muita coisa mudou por lá. Por exemplo, chegar ao aeroporto de Nova Déli não é mais a experiência traumatizante como a que tive naquela manhã quente de dezembro de 1985, quando pus os pés lá pela primeira vez. Mas a frase curiosa ainda está estampada em boa parte do carros.

    Lembro-me da estranheza com que vi aquilo na minha chegada. Levei alguns dias para perceber que, longe de uma campanha para piorar a poluição sonora de uma cidade (aliás, um país) que já é barulhenta (o), as pessoas pedem para quem está atrás buzinar porque... bem, porque boa parte dos carros –pelo menos naqueles idos dos anos 1980– simplesmente não tinha um espelho retrovisor!

    E não estou falando dos "tuk tuks", aquelas "charretes motorizadas" que infernizam os congestionamentos das metrópoles indianas. Eu não conseguia achar retrovisores nos carros mesmo. Taí algo que mudou na Índia –e estive lá em dezembro passado, para poder confirmar: os veículos agora saem da fábrica com os devidos espelhos. A questão é que os motoristas parecem não ter o hábito de usá-los!

    Esse certamente era o caso daquele que nos levava, em 2004, numa viagem pelo Rajastão, uma das regiões mais lindas do país. Não me lembro de seu nome, mas certamente não me esqueci de seu turbante. É claro que ele não era o único condutor indiano que portava aquele "estilo" –mas não me recordo de ter visto um arranjo tão caprichado.

    Ele era, como uma parte representativa da população indiana, um sikh –religião em que o turbante, chamado de "dastaar", é tradição obrigatória (o último primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, usava o seu com muita elegância). Entre os sikhs, ele representa espiritualidade, honra e coragem. E isso nosso motorista tinha de sobra.

    Coragem é fundamental para dirigir na Índia –sobretudo nas estradas. Para você ter uma ideia, o trajeto entre Nova Déli, nossa largada, e Udaipur, nosso destino, tem exatos 673 km –e levamos 16 horas para percorrê-lo!

    Passamos por todo tipo de "emoção" no caminho: ultrapassagens dignas de sequências de perseguição de filmes de Hollywood (ou mesmo Bollywood!), engarrafamentos sonolentos, camadas de poeira, fumaça e areia se acumulando na pele, odores e sabores dos mais variados e toda sorte de animais, que competiam por espaço nas mesmas faixas que os carros. Inclusive elefantes –nem sempre pilotados.

    Nosso motorista enfrentava impassível cada um desses obstáculos e pouco falava: quem cuidava da comunicação entre nós era meu grande amigo indiano, Tuli. Uma buzinada ou outra era a única reação que ele eventualmente demonstrava. Na nossa parada na exuberante Jaipur, acho que o vi esboçar um sorriso diante do Hawa Mahal, o impressionante palácio rosa.

    Mas de lá até Udaipur, nosso ponto final, ele voltou a ser aquela figura séria, nos transportando com a mesma dignidade do marajá dali –que transformou parte da sua "humilde residência" em um hotel tão luxuoso que os hóspedes recebem na chegada um papel de carta personalizado com seu nome.

    Que, no meu caso, veio escrito José Carlos Masculino –mais uma história fascinante, dentre tantas que vivi da Índia, que conto da próxima vez que "passarmos" por lá...

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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