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    Zeca Camargo

    Um café no Cairo

    22/10/2015 02h00

    Haisam entrou no Café El-Fishawy como se fosse um sócio-fundador. Circulando pelas mesas minúsculas e amontoadas de turistas e "locais" –e felizmente de alguns locais também–, ele procurava um canto onde pudesse refrescar, ou até mesmo alimentar, a equipe que ele acompanhava e que tinha trabalhado o dia inteiro: eu, Renata, nossa produtora tenaz, Calixto, nosso repórter cinematográfico, que, para nossa sorte, passava tranquilamente por um egípcio "da gema".

    Apesar de ser de Alexandria, boa parte do trabalho de Haisam era no Cairo, onde ele circulava com desenvoltura uma nota acima de um guia turístico convencional. No El-Fishawy, então, ele era "dono do pedaço", como se tivesse vivido todos os mais de 200 anos de conversas ali jogadas fora –filosóficas, mundanas, revolucionárias.

    Nossos rostos, fragmentados nos inúmeros espelhos das salas do café, quase não disfarçavam o cansaço de um dia não só nas pirâmides de Gîza, mas também numa área das menos glamurosas da capital do Egito, onde vive a pequena (mas forte) comunidade ortodoxa copta: um lixão onde eles cumpriam o importante papel de reciclar os dejetos de uma cidade em que o poder público havia simplesmente desistido de prestar este serviço.

    Foi sim uma jornada exaustiva, menos pela demanda do trabalho do que pelo esforço de encontrar beleza no meio de um cenário de miséria. Estive lá em 2010, antes da Primavera Árabe, mas a impressão geral era já de um certo caos urbano.

    A grandiosidade das pirâmides podia, conforme a rua que você pegasse, ser facilmente obstruída por pequenas colinas de entulho. As longas avenidas expressas que ligam partes distantes da imensa capital (estava lá para uma série de reportagens sobre megacidades) ofereciam desoladas construções abandonadas, muitas vezes cercadas por favelas espontâneas. E mesmo nas áreas mais turísticas –como o bazar Khan el-Khalili, onde ficava o "nosso" café–, a sensação era de insegurança, transmitida ironicamente pela presença maciça de militares fortemente armados em cada esquina.

    Mesmo assim estávamos felizes com o que havíamos conseguido registrar, e especialmente pelo nosso passeio de camelo em torno da Grande Esfinge (com o perdão do clichê). Peça central de nossa fantasia egípcia –que aprendemos a adorar desde crianças, com suas múmias, pirâmides e hieróglifos (cujos únicos possíveis rivais no imaginário infantil talvez sejam os dinossauros e os astronautas)–, a enorme estátua é um ímã poderoso para nosso olhar e imaginação.

    Aquele enorme rosto, meio humano, meio animal, que tínhamos visto contra o céu azul-claro (a poluição não o deixava ficar anil), cambaleando na corcova do bicho com o deserto "ali na esquina", não saía das nossas retinas, mesmo já sentados no El-Fishawy, quando Haisam nos tentava convencer a visitar, na nossa folga, a "sua" Alexandria. A ideia era tentadora: um eco distante de Istambul (ainda Constantinopla), que viu séculos de história como porto cosmopolita, o apelo quase irrecusável da biblioteca –tanto a mítica antiga, como a fantástica nova (obra do escritório de arquitetura norueguês Snøhetta), reaberta em 2002–, o Mediterrâneo profundo".

    No final, porém, decidimos passar o único dia livre que tínhamos ali mesmo no Cairo –quem sabe revisitando as pirâmides, descobrindo um novo beco na cidade antiga, arriscando um pôr do sol no parque Al-Azhar". Ou então só passando horas sentado ali mesmo, no Café El-Fishawy, vendo a vida passar entre um chá de menta e outro.

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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