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    Zeca Camargo

    'Mafia' no caminho

    25/02/2016 02h00

    Eu achei que não tinha entendido direito quando o piloto anunciou o nome de onde estávamos prestes a pousar. Até porque eu estava distraído com o que via pelas janelas. Era para ser um voo breve e encantador, num avião nem tanto, de Zanzibar a Kilwa, duas ilhas que ficam na costa da Tanzânia. E de repente a gente estava fazendo uma escala em"¦ "Mafia"?

    As 48 horas anteriores a essa travessia já tinham sido"¦ intensas! Conexões naquele continente –sobretudo aéreas– não são um passatempo para amadores. E mesmo com minha experiência nessa região, eu acabei chegando com um dia de atraso a Zanzibar, onde faria parte da minha reportagem na Tanzânia.

    Por causa disso, a visita que deveria ser um desfrute, com direito até a uma visita de fã pela casa onde Freddie Mercury (sim, o do Queen!) nasceu, acabou sendo uma grande correria. Percorri séculos de história da "ilha das especiarias" em apenas uma manhã. E antes de o sol se pôr eu já estava embarcando para Kilwa.

    Viajávamos em três (eu, mais um repórter cinematográfico e um produtor) e a lembrança que eu tinha era a de termos fretado o avião para o percurso. Mas na última hora recebemos mais dois passageiros: uma mulher vestida demais para aquele calor (e com uma perna engessada) e seu acompanhante (profissional). Naquela míni Babel –o piloto era italiano–, achamos melhor não perguntar nada e seguir em frente.

    Mas no caminho tinha a "Mafia". Sim, tinha a "Mafia" no meio do caminho –e se escrevo essa palavra com aspas é para chamar a atenção de que a ausência do acento não é um erro ortográfico: esse é nome da ilha mesmo. Só que eu nunca soube que ela existia –e muito menos esperava fazer uma escala por lá.

    O aeroporto era tão pequeno e escondido que quase suspeitei que ali era um lugar realmente secreto, não fosse pelo nome da ilha escrito de maneira quase escancarada no telhado do casebre que fazia as vezes de sala de embarque. A dupla "clandestina" desceu rapidamente (os motores nem foram desligados) e logo Mafia era mais um ponto no Índico.

    Quinze minutos depois estávamos finalmente em Kilwa, onde uma espécie de paraíso perdido nos esperava. Nossa missão lá era mostrar dois patrimônios da humanidade, ambos bastante ameaçados pelo tempo: a mesquita de Kilwa Kisiwani e a antiga cidade de Songo Mnara. Mas se o estado desses monumentos não era animador, eles tinham pelo menos a sorte de existirem enquadrados por uma natureza estupenda.

    Os elegantes arcos da mesquita, por exemplo, criavam belas ilusões de ótica com suas sombras. E um bom trabalho de restauração já estava em andamento em Kisiwani. O que não impedia o visitante de olhar para a paisagem, pontuada por homens de túnicas e mulheres de véu, e não ter certeza de em qual século aquilo tudo se encaixava"¦

    As ruínas de Songo Mnara estavam num estado mais frágil. Evocar uma cidade rica ali não era apenas um exercício de imaginação, mas pura fantasia. Porém, nas histórias do nosso guia de lá –um garoto chamado Astmani, que mal parecia saído da adolescência–, esse passado soava muito presente.

    Astmani falava com a força de quem respeita seus ancestrais e fazia da sua história pessoal um tema universal. Meio melancólico, é verdade, mas não desprovido de graça e interesse. Sentado nas escadas do que, séculos atrás, foi a piscina de um palácio frondoso, fui me emocionando conforme a luz caía.

    E foi com essas narrativas que voltei para Kilwa no sopro lento de um "dhaw", um titubeante barco a vela tradicional daquela região, pilotado por outro quase adolescente. Um garoto que usava óculos escuros sem lentes (sim!), mas com tanta atitude que eu cheguei a achar que ele era não dali, mas natural de uma outra ilha ali perto, chamada... "Mafia"!

    zeca camargo

    É jornalista, apresentador e autor de livros como 'A Fantástica Volta ao Mundo' e '1.000 Lugares Fantásticos no Brasil'. Escreve às quintas,
    a cada duas semanas.

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